EP4 WYT
Atualizado: 8 de mai. de 2021
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JOGOS OCULTOS
PARTE 1
Neste fim de ano, a "Disguise Games", uma empresa de jogos digitais, resolveu proporcionar uma experiência bastante inusitada aos seus funcionários: um encontro presencial.
Depois de tantos imprevistos, problemas técnicos, noites em claro, brigas, vazamentos de dados e até invasões hacker, era justo que as conquistas fossem celebradas. Até porque conseguiram a proeza de lançar um jogo antes do deadline. E sem bugs.
O problema é que para uma empresa criada por nerds que amam o isolamento social sobre todas as coisas, nada pareceu mais rústico e fora de propósito do que um encontro face a face, em carne e osso, na mesma mesa, no mesmo ar, no mesmo metro quadrado.
Era como ser chamado a escutar vinil ou receber um desconto-relâmpago de curso de datilografia. Para quê desenterrar ossadas antigas se o novo estava vicejando?
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PARTE 2
O chefe ousou nesta manhã tocar a campainha de cada um dos funcionários, em suas residências físicas mesmo, de alvenaria, não as de bits. Vestido de carteiro, entregou convites personalizados escritos à mão. Queria gerar uma experiência tão real que forçasse as pessoas a saírem do conforto das telas.
A performance fazia referência ao último game da equipe: “Cartas Marcadas”. Nele, um carteiro resolve interceptar as cartas dos moradores para reescrever. A fraude é descoberta e considerada imperdoável pelos locais. A cidade então se fecha para caçar o impostor. Agora ele deve decidir em que contexto e para quem se revelar. Ou apostar na sobrevivência à custa de disfarces.
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PARTE 3
Mas o jogo mais difícil de todos é o jogo da vida real. Esse é realmente difícil de zerar. O frio na barriga foi unânime mas curiosamente todos confirmaram presença no jantar.
Manu foi a primeira a chegar, seguida de Sérgio, Júlia e Gregório. O garçom deu as boas vindas com um sorriso acolhedor. Mostrou as mesas reservadas e fez um gesto de cumprimento caricatural, rodando a mão direita três vezes, em giros no sentido horário. Depois puxou um lenço de pano do bolso e sacudiu num espano grave e sonoro. Em seguida curvou-se para baixo e estendeu uma das pernas e os dois braços até se equilibrar na excêntrica pose.
Os 4 se entreolharam segurando o riso o quanto puderam.
O garçom levantou com altivez, ajeitou sua roupa e foi atender outra mesa.
NORGU: Bela introdução, não? Vamos beber alguma coisa? O momento definitivamente está pedindo.
GEMMA: (riso exagerado) Já quer aquecer as turbinas né Gregório? Eu vou esperar mais um pouco o pessoal chegar, senão acabo bebendo demais. Sou mais lenta pra essas coisas.
OATIX: Vai no seu ritmo, Júlia... Eu vou acompanhar o Greg na breja.
ZIMAK: Acho que vou tomar só uma água com gelo e limão por enquanto.
Zimak destrava o celular e começa a passar as telas repetidamente em loop. Lê as mensagens pendentes e digita alguma coisa. Ajeita um pouco o penteado usando a câmera como espelho.
NORGU: Grande! Duas cervejas e uma água com gelo e limão, por favor!
GARÇOM: Claro!
O garçom desabotoa o colete. Pressionando com uma das mãos, mantém um lado do colete rente ao corpo e abre o outro lado, revelando na parte interna vários bolsos contendo uma variedade de bloquinhos de notas de todos os tipos.
GARÇOM: Por favor, escolha o que mais lhe agrada.
Os 4 se entreolharam novamente, agora um pouco assustados, julgando o garçom um tanto insano.
Norgu fez a escolha mais óbvia. Optou pelo bloco com estampa de dinossauro, que lhe remeteu ao mascote da "Disguise". Aquele que ele mesmo tinha ajudado na concepção, principalmente no desenho do logo, em que o simpático dava uma piscadela com um dos olhos e fazia um sinal de positivo com o polegar, envolto no pescoço por uma guirlanda estilizada de fios de cobre.
O garçom abotoou o colete e começou a anotar o pedido por uma duração estendida, nada condizente com uma solicitação tão simples e breve de apenas 3 bebidas.
NORGU: Tudo bem aí, meu amigo? Quer que a gente repita?
GARÇOM: Não, só um instante, já estou quase no fim.
Ele não parava de escrever, chegando a virar as páginas algumas vezes. Zimak disfarçadamente filmou a cena no celular. Oatix e Norgu gargalharam já sem disfarçar.
GEMMA: Mas o que você tanto escreve?
GARÇOM: É muita informação, minha amiga, é melhor registrar senão esqueço. Vai demorar um pouco, tá? Mas vai chegar... A casa está cheia hoje, espero que entendam. Mas nossa comida é a melhor da cidade, isso posso garantir, vai compensar!
GEMMA: Tudo bem, estamos esperando o resto do pessoal mesmo.Tem muita gente pra vir ainda.
OATIX: Vai no seu ritmo, mestre, vai no seu ritmo.
O garçom fez uma mímica, simulando uma pequena virada de bateria e dublando os sons dos tons e pratos com a boca.

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PARTE 4
NORGU: E então, há quanto tempo não saíam de casa hein?
OATIX: Acredito que uns 10 anos.
GEMMA: É bem por aí mesmo... Mas é muito bom ver vocês! Estou muito feliz com isso. Nem lembrava dessa minha saudade de olho no olho, de sentir essa energia. É muito bom!
ZIMAK: Às vezes né...
NORGU: A Manu nem queria vir, só veio só para espiar.
ZIMAK: Nada, eu quis vir mesmo. Achei bastante criativo. Queria ver se ainda sabemos nos relacionar depois de tanto tempo.
Todos riem ao mesmo tempo. A mesa estremece um pouco e a toalha desalinha. O garçom passa rapidamente , ajeita a toalha e aproveita para trazer cestos com temperos e talheres.
OATIX: Obrigado, meu amigo.
GARÇOM:Que nada!
OATIX: É uma satisfação enorme ver todo mundo reunido. Muito legal mesmo a iniciativa.
GEMMA: Que bom poder ver vocês reais assim, sem delay. Agora ninguém reclama mais de não estar sendo ouvido não é mesmo? Agora não tem desculpa pra gente não se ouvir. É bem legal mesmo. Muito bom, estou adorando! Legal demais, muito bom.
ZIMAK: Eu to sentindo falta do enquadramento peculiar do chefe.
OATIX: É verdade, com o perdão da sinceridade, aquele é incorrigível.
ZIMAK: Logo ele que fez aquela cartilha de boas práticas nas videochamadas... Não cumpria uma vírgula da própria cartilha...
OATIX: Pois é...
NORGU: Eu dei alguns toques nele, mas ele sempre dá um jeito de achar um ângulo estranho, no fundo ele gosta, não consegue abrir mão.
GEMMA: Vai ver ele quer aparecer...
NORGU: Pode ser
OATIX: Ou é aquele papo de "vou gerar crises para motivar a criatividade da equipe"
ZIMAK: Putz, nem me fale.
NORGU: Pelo menos uma vez por ano podemos marcar um encontro assim, o que acham?
GEMMA: Sim, precisamos fazer isso mais vezes, com certeza.
NORGU: Vamos marcar sim, só não sei se a melhor opção é repetir o lugar. A bebida tá demorando demais.
GEMMA: Sim, muita demora.
OATIX: (olha o relógio) Faz um bom tempo que pedimos já.
ZIMAK: Estranho, olha aqui o comentário na internet. "Atendimento mais rápido da minha vida. Garçons profissionais e comida excelente"
NORGU: Garçons profissionais? Seria profissionais de circo?
( gargalhada coletiva)
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PARTE 5
Oatix dobrou pacientemente as mangas da camisa social. Zimak puxou o celular mais para perto de si. Gemma olhou para os lados.
GEMMA: Gente, o pessoal não costuma se atrasar. Será que aconteceu alguma coisa?
NORGU: Não costumam se atrasar virtualmente né? Agora que estamos conhecendo a faceta presencial. Espero que não atrasem demais. Não posso demorar muito. Daqui vou direto fazer a manutenção de uma rede, tenho dois projetos pessoais para programar e uma empresa pra rodar.
OATIX: Eita! Não sei como você dá conta disso tudo. A Disguise já me toma tempo suficiente.
NORGU: É prática, quando engata tudo que tem que fazer acaba indo.
OATIX: E a empresa, como tá a sua empresa?
NORGU: Cara, não podia estar melhor. Estamos crescendo demais. 20 funcionários. Na liderança, eu e meu sócio. Te falei que estou com um sócio agora né?
OATIX: Sim, você comentou uma vez.
NORGU: E pensar que tudo começou numa viagem ao Havaí... Viagem ótima... Vocês precisam viajar pra lá um dia, sério... Mas independente da beleza do lugar, olha a minha sorte: naquele avião, um japonês sentou do meu lado. Conversamos a viagem inteira, e por alguma coincidência estranha, percebemos que tínhamos habilidades complementares. Estávamos alinhados com os mesmos valores. Putz, praticamente fechamos a parceria ali. Viramos sócios e grandes amigos também. Fundamos a primeira empresa de viagem virtual do hemisfério sul. Vamos começar a vender nossos pacotes em breve, já está tudo engatilhado, quase saindo.
GEMMA: Legal, é bom quando as coisas se encaixam assim.
ZIMAK: Interessante... voos para lugar nenhum?
NORGU: Tava demorando a ironia.
ZIMAK: É só uma observação... Viagem é uma das poucas coisas que eu ainda gosto de fazer pessoalmente.
NORGU: Tudo bem, respeito sua visão. Mas o que vocês tem que entender é que o público em geral não tá pensando assim. Não é o que mostram os números. Eu pesquiso há anos o mercado de viagens. Vocês precisam se atualizar, porque... Só um minuto... vou chamar outro garçom para ver se acelera essa nossa bebida.
Norgu levanta a mão. Vários garçons passam atarefados, ignorando a solicitação. Atrás dele sopra um vento gelado na altura do pescoço.
GARÇOM: Calma, eu estou de volta. As coisas sempre chegam no devido momento. Essa noite é bem especial pra vocês não é mesmo? Festa de fim de ano da empresa?
ZIMAK: Isso.
NORGU: Sim.
GARÇOM: Certo, aproveitem! Boa sorte!
O garçom posiciona um balde de gelo no centro da mesa. Abre a garrafa de cerveja envolta em flocos glaciais cinematográficos e serve oscilando a altura do jato para atingir a proporção ideal da espuma. Repousado na bandeja, está um copo d´água com gelo e limão praticamente transparente. Era possível sentir a refrescância com os olhos. A sinestesia ao alcance de todos. Pôs um guardanapo espesso de alta absorção na base do copo, de modo que pudesse resistir a pelo menos 40 minutos de exposição sem murchar.
GEMMA: Eu estou deslumbrada com esse tratamento de primeira classe, esse cuidado todo. Devia ter pedido alguma coisa também.
GARÇOM: Claro, fique à vontade. Aceita uma sugestão da casa?
GEMMA: Uma bebida?
GARÇOM: Sim, um blend de chá refrescante de fabricação própria.
GEMMA: Por favor, pode trazer!
O garçom pisca com o olho e faz um som de click com a língua. Se retira rápida e precisamente como se tivesse entrado por um alçapão secreto.

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PARTE 6
GEMMA: Lembrei também de uma viagem que fiz há um tempo... intercâmbio no Canadá... como isso foi importante pra mim, vocês não têm ideia... Depender de falar inglês pra viver, trabalhar em hostel... Aprendi demais! Recomendo muito, como experiência de vida, sabe. Vocês nunca foram né? (negam com a cabeça)
GEMMA: Mesmo, acho que todo mundo tinha que passar por isso uma vez na vida. Ainda mais pra mim que sou uma pessoa muito expressiva, valeu muito à pena. Mas tem que falar, tem que querer se comunicar.
ZIMAK: Acho que você é a pessoa mais fluente em inglês aqui da "Disguise".
GEMMA: Sim! Os aprendizados foram para a vida toda. Foi nessa época que eu tive certeza de que ia trabalhar com programação também. Percebi que eu podia unir meu lado técnico com a minha facilidade de comunicação. Era também uma excelente chance de trabalhar em qualquer lugar do mundo, prolongando essa sensação boa e desafiante de ser meio nômade, vez ou outra morar num país diferente, trabalhando à distância. Sempre tem lugar pra um bom programador.
OATIX: Muito legal. E você ainda tá marcando os países que visitou?
GEMMA: Sim! você lembra ?!
OATIX: Como eu ia esquecer? Nas videochamadas, ao fundo, sempre víamos aquele mapa-mundi na sua parede, com o "x" nos países que você já conheceu.
GEMMA: Exatamente! Sou desbravadora do mundo! É bom saber que pisei em vários países, em vários continentes. É bom ter amigos em qualquer lugar. É reconfortante.
ZIMAK: E essas amizades continuam? Ou só duram enquanto você fica no país?
GEMMA: Continua, claro! Sempre nos falamos nas redes sociais. Amizade sempre soma. Meu número de amigos no "Wastebook" é uma curva ascendente. É muito bom, muito legal.
ZIMAK: Júlia e Greg são as raridades sociáveis dessa empresa...
NORGU: Agradeço o elogio.
GEMMA: Idem, querida! Muito obrigada!
ZIMAK: Mas em termos de seguidores a Júlia é imbatível. Eu sempre acho engraçado o susto que as pessoas levam quando descobrem os números astronômicos das redes sociais dela. De uma hora pra outra é como se mudassem o tratamento contigo, depois que sabem de seu status de influencer. Ficam um pouco assustadas, acuadas... Aquele "shift" na cabeça, quando você passa de uma pessoa comum a alguém especial. E essa mágica se dá por critérios quantitativos. Os números é que te dão valor.
GEMMA: Pois é, mas é bobeira... Todo mundo pode crescer uma rede social se cultivar bem. Todos somos iguais.
NORGU: Dá um workshop pra gente, Júlia.
GEMMA: É uma ideia! Você pode propor pro chefe hein? Ele ouve as coisas que você fala.
NORGU: Vou falar com ele sim. Mas provavelmente eu não vou poder comparecer. Você sabe que minha agenda não tem pausa.
GEMMA: Tudo bem, mas sei que torceria por mim à distância
NORGU: Sem dúvidas! O que a gente quer é que a equipe esteja a todo o vapor, com todo o seu potencial em prática. Você só trabalha na Disguise?
GEMMA: Sim.
NORGU: Então, po! Pelo que vejo você faz poucas horas líquidas lá. Aproveita esse tempo aí! Poderia estar crescendo bem mais!
O guardanapo de alta absorção que mantinha o copo de Zimak em encanto de asseio começa a alagar. Zimak contrai as mãos por baixo da mesa e dissipa tensões com os dedos médio e indicador arranhando a coxa.
O garçom recolhe discretamente da despensa os guardanapos de melhor qualidade , coloca dentro da gaveta do armário de louças e fecha com uma chave-mestra ocultada nas mangas.

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PARTE 7
NORGU: Júlia, aí vai um desafio: Se você tivesse que escolher entre amizade e conhecimento, o que você escolheria?
ZIMAK: Lá vem ele com os joguinhos...
NORGU: (risos) Claro, é divertido po!
GEMMA: Mas não tem como te responder assim, não tem como separar as duas coisas. A amizade faz a gente aprender e o aprendizado leva a mais amizades.
NORGU: Vai Júlia, escolhe apenas um, vamos prezar pelo raciocínio binário um pouco.
GEMMA: A gente já faz isso demais, não? Por quê fazer mais disso agora?
NORGU: Porque é divertido, não estamos aqui basicamente pra nos divertir?
GEMMA: Então me responde você, como você vê os relacionamentos na "Disguise"?
NORGU: Como assim?
GEMMA: Você acha que é possível construir um laço verdadeiro no ambiente de trabalho?
NORGU: Claro, o que estamos fazendo aqui? Eu considero vocês amigos, com certeza. Beberia todo o fim de semana com vocês, se vivêssemos numa época um pouco menos digital. Mas podemos fazer dessa experiência um gatilho pra alguns encontros mais lights assim, isso pode fortalecer ainda mais essa rica amizade. Fortalecer o espírito de equipe ajuda demais, ajuda muito.
OATIX: Boa, vamos colocar essa ideia pra funcionar sim.
NORGU: Sim, podemos variar, nos encontrar fora das plataformas da empresa, pra alimentar esse contato. Uma vez ou outra, fim de tarde, rapidinho... dá pra gente se ver sim. A Manu pode finalmente deixar a timidez de lado e nos mostrar também aqueles artesanatos que ela posta no "Glinchagram".
OATIX: Que artesanato?
GEMMA: Você faz artesanato?
ZIMAK: (voz trêmula) Às vezes... quer dizer... são só alguns objetos de decoração.
GEMMA: Olha! Eu sempre achei a Manu a mais high-tech de todas! Jamais imaginei ela fazendo trabalho manual. Mostra pra gente?
ZIMAK: Mas como você descobriu isso, Greg?
NORGU: No "Glinchagram" ora, não acabei de falar?
ZIMAK: Mas a minha conta é fechada.
NORGU: Linda, não é à toa que eu virei o chefe de programação do nosso setor. Nenhum perfil é privado pra mim.
ZIMAK: Você está confessando que invadiu a minha conta?!
NORGU: Não, claro que não. Eu tenho um bot que destrava pra mim tudo que é rede social privada. É uma decisão genérica, não tem nada a ver contigo especificamente. É apenas por razões de trabalho. Imagine se eu não pudesse navegar livremente na internet? Pra quem quer aprender mesmo e se diferenciar, tem que estar a par de tudo. Imagina o tempo que eu gastaria pedindo autorização... Depois até a pessoa ver que eu pedi autorização e me autorizar a ter acesso é tempo demais, burocracia demais. Minha rotina já é muito apertada! Lógico que eu não indico que qualquer pessoa faça isso, vamos deixar bem claro... Tem que ter bom senso. É como um terapeuta que ouve no consultório vários relatos pessoais. Ele teve acesso privilegiado àquilo, não vai usar pra outras razões que não sejam profissionais. Pelo menos é o que se espera, é o bom senso.
ZIMAK: Mas você acaba de dar uma informação privada minha como se fosse pública.
NORGU: É besteira, só comentei porque me veio à mente agora, pra puxar assunto. Não lembrava que sua rede era privada.
ZIMAK: Se está escrito privada é porque é privada.
NORGU: Não te falei que no meu computador não tem mais essa diferenciação? Os bots "desprivatizam" tudo pra mim. Mas desculpa se te incomodou. Qual o problema po? Seu artesanato é muito bom! Você deveria mostrar.
ZIMAK: Se eu quisesse mostrar eu tinha colocado no público.
NORGU: Se você não quisesse mostrar você não colocava em lugar nenhum.
ZIMAK: Greg, eu não gostei disso. Você foi antiético comigo.
OATIX: Calma gente, sem briga galera, sem briga.
ZIMAK: O que mais eu posso esperar de você agora? Que outras coisas sabe de mim?
NORGU: Relaxa, cedo ou tarde tudo o que você coloca na internet aparece. É a lei.
GEMMA: Mas concordo com ela, se é privado, tinha que ficar no privado.
OATIX: Galera vamos mudar de assunto. Amanhã já entramos de férias... Vamos falar de coisa boa, o que vão fazer de bom?
NORGU: Se você não tem nada a esconder é só relaxar. Relaxa os ombros, respira. Eu não tenho mais nenhuma informação extra de você, Manu. Tenho mais o que fazer, meu dia é lotado, não tenho tempo de te stalkear. Foi alguma coisa que apareceu na minha timeline e lembrei agora, foi só pra puxar assunto.
ZIMAK: Você sempre faz isso.
NORGU: Isso o quê?
ZIMAK: Você sabe, você sempre faz isso.
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PARTE 8
Os garçons se mobilizam para tirar as placas de “reservado". Desfaz-se a longa mesa formada pela emenda de várias mesas quadradas enfileiradas.
GARÇOM: Com licença, queridos, só explicando para vocês. Nossas reservas são canceladas automaticamente depois de 1 hora sem o comparecimento. Se os seus colegas vierem, terão que ficar na fila e ocupar mesas separadas, ok? Mas para vocês não muda nada, vocês 4 podem ficar tranquilos nesta mesa.
Poderiam simplesmente sair, mas havia uma força de sucção que os mantinha praticamente colados àquela mesa. Em câmera lenta, com os gestos congelados, tomavam longos e demorados goles. Uma luta contra resistências misteriosas. A presença lhes escapava por pacotes de dados indecifráveis. A temida sensação de estar sem ser. Reconhecer-se bem mais virtual que real. Saudade da luz das telas nutrindo as retinas. Saudade do poder de trocar de aba. Estavam como insetos noturnos, levados por rotas indesejáveis, porque não sabiam reconhecer a verdadeira luz da lua.
O garçom assistia à cena com atenção. Pediu que apressassem o preparo na cozinha. Levou o chá com especiarias e bateu o fundo do copo propositadamente com certa força sobre o tampo da mesa, para que o barulho os tirasse do torpor. Não foi suficiente. Com a bandeja metálica vazia, o garçom refletiu as luzes dos lustres e direcionou para a a altura da visão dos 4. Eles coçaram os olhos e foram voltando à si.
Gemma foi a pioneira da retomada, com um sorriso rasgado, lutando contra a constipação emocional.

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PARTE 9
NORGU: Então galera, como vai ser? Vocês vão ficar?
GEMMA: (finge que está ouvindo e sorri com certa estranheza) Ahm? Desculpa, não estava ouvindo. Tava prestando atenção na música ambiente.
NORGU: Eu perguntei se vocês pretendem ficar mais um pouco.
GEMMA: Por mim ficamos. Vamos experimentar a comida. Parece boa!
ZIMAK: Acho que agora deixou de ser um encontro de empresa e passou a ser um encontro de gente. Isso é muito fora da caixa. Vou ficar um pouco mais sim.
OATIX: Se pararmos pra pensar é a primeira vez que isso acontece. De ficarmos em contato assim, só nós quatro.
GEMMA: Aconteceu sim, não lembra do segundo ano de reuniões online?
OATIX: Ah é, pode crer. Todos foram saindo da chamada um a a um e só sobramos nós 4... Verdade. Mas não durou muito tempo... Trocamos uma meia dúzia de palavras e saímos. Foi até um pouco constrangedor, a gente mal se conhecia na época.
NORGU: Até que conversamos bastante para os nossos padrões usuais. Sempre fomos do estilo "cada um no seu quadrado". Foi ali que a Manu finalmente relaxou no trabalho. Sempre com aquela seriedade militar um pouco assustadora... Foi bom vê-la sem farda. ( risos)
ZIMAK: É, cada vez mais eu tenho vontade de mandar fazer um alvo com a sua cara pra praticar tiro esportivo.
NORGU: Calma Manu, não quis te ofender.
ZIMAK: Claro que quis, Gregório. Você sempre faz isso. Não só espalhou pra todos tudo aquilo que eu não queria espalhar, como inventou vários detalhes que nunca aconteceram. Se coloca como o maior entendedor de todas as coisas do mundo, faz memes depreciativos e fofocas expondo nossos defeitos pra pessoas que você sabe que vão espalhar mais ainda. Você é um manipulador. Você quer se manter no topo, você não tem escrúpulo.
NORGU: Que arsenal de acusações, ahm? Não sei se eu mereço isso. Eu achei que estava te enturmando. Você sempre foi tão fechada no escritório, precisava de uma mãozinha, eu sentia isso.
ZIMAK: E todas as suas histórias falsas sobre todos foram pra enturmar quem? Ou pra manipular a narrativa e sempre sair por cima? Ou para ter controle, para diminuir os outros?
OATIX: Calma gente, isso aqui é uma confraternização. Vamos esquecer essas mágoas. Já passou.
NORGU: Então me conta pelo menos uma história que eu inventei. Você ironizou os meus "voos para lugar nenhum", mas é você que não vai aterrissar em nada dessa forma. Isso é paranoia, eu só abri o caminho pra te enturmar. E te ajudei. Se não fosse por mim, você corria o risco até de sofrer algum bullying , já começava a ser chamada de travadinha. Eu cortei com brincadeira, fiz os memes sim, mas isso só tornou o que poderia ser ofensa algo mais leve, pra todos se divertirem.
ZIMAK: A custa de me desmerecer.
NORGU: Desmerecer? Me fale então, o que eu desmereci?
ZIMAK: Você sempre faz isso também. Você é um programa de computador! Você é mais previsível do que gostaria de ser. Quando toca em determinados assuntos, reage como que por condicionamentos e organogramas mapeáveis. Quer que as pessoas citem o óbvio e insiste para cansar o oponente. Você nunca vai admitir suas falhas de caráter. E sempre tem uma resposta pronta na ponta da língua, brilhantemente pensada, com floreios retóricos, explicações perfeitas, citações de livros, eloquências. Adora domar a platéia com seu entretenimento barato. E o pior, consegue.
NORGU: Eu tenho uma dica para você: se valoriza mais, cara! Cada um tem sua opinião e precisa defender ela custe o que custar, a vida é assim mesmo. Se você não aprendeu isso não sei o que está fazendo nesse planeta. Se eu me expresso melhor que você isso deveria ser motivo de orgulho pro nosso time e não de inveja. Eu deveria ser uma inspiração pra você.
ZIMAK: Eu jamais invejaria você, Gregório, você sabe disso. Eu te acho um profundo impostor.
GARÇOM: Com licença, mais uma dose?
NORGU: Por favor, mestre. Vai Manu?
ZIMAK: Se eu quiser eu vou pedir, Gregório.
NORGU: Tudo bem, então pronto. Vê duas doses pra mim.
Com Norgu de costas, o garçom olha para Zimak e faz um gesto com as mãos simulando um corte no pescoço, com olhos arregalados , lábios inferiores contraídos pra baixo, e veias do pescoço expandidas.
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PARTE 10
GEMMA: É verdade...
ZIMAK: Como assim?
GEMMA: To concordando contigo, Manu. Também acho que o Greg exagera.
NORGU: Sério? Vocês vão fazer um combo pra me derrubar? E sem nenhum gole de álcool? Vocês me surpreendem… Não querem pedir algo pra beber mesmo?
ZIMAK: Se já tá pegando fogo sem álcool, imagina com.
GEMMA: Ninguém se sente à vontade de ficar perto de você, na verdade. Você sempre quer mostrar que sabe muito mais que todos.
ZIMAK: E precisamos reconhecer que muitas vezes você sabe muito, não tem como negar, mas você põe tudo isso a perder ao humilhar as pessoas. Você fica pequeno, fica nojento...
NORGU: (deboche) Ok, to ouvindo as fake news!
GEMMA: E faz questão de ficar sondando a fragilidade dos outros para expor em público no momento mais humilhante possível.
NORGU: Vocês surtaram! Quando eu fiz isso? Me cita um caso, só um caso concreto!
GEMMA: Deixa o trabalho pesado pros outros, sempre acha uma desculpa para trabalhar menos e parecer que está trabalhando mais, pra quem vê de fora. O chefe sempre acredita em você porque você envolve num papo legal. Mas você sempre inventa as histórias mais mirabolantes para sair por cima. E nós sempre saímos prejudicados.
NORGU: Eu quero um caso concreto de quando eu fiz isso, que dia, que horas, em que contexto.
GEMMA: É óbvio que eu não anotei o dia e a hora.
NORGU: Claro que não, porque nunca aconteceu.
ZIMAK: Você está ouvindo o que a gente tá falando? A pior forma de negação é não olhar o óbvio.
NORGU: Tá bom, vamos pedir uma terceira opinião. Sérgio, você que sempre foi um cara sensato e que eu respeito pra caramba. Alguma vez já fiz essas coisas que elas estão falando?
OATIX: Olha...
NORGU: Pode falar, eu to aberto a críticas.
OATIX: Greg... Acho que o que elas estão querendo dizer é que você, como se diz, "já chega com o pé na porta". Mas você é um cara legal, tem uma assertividade muito boa. Vamos falar de outra coisa, esse assunto não vai dar em coisa boa. Vocês já viram as fotos do meu Husky Siberiano? Olha como ele cresceu. (mostra fotos no celular)
GEMMA: Que lindo! Eu adoro Husk Siberiano!
OATIX: Eles têm uma pelagem muito grossa pra suportar o frio, mas se adaptam ao calor também. São versáteis. E meio individualistas também. O meu já fugiu de casa uma vez... Eles tem essa coisa de bicho solto, exploratória.
GEMMA: Hum... Já me identifiquei. Dizem que o cachorro é um reflexo do dono. Você se sente assim também?
OATIX: Assim como?
GEMMA: Com vontade de fugir em alguns momentos.
NORGU: (riso debochado) O Sérgio? O cara mais estável que conheci? Que eu saiba ele quer permanecer, não sair.
GEMMA: Vai ver uma parte dele é Husky. Uma parte que ele nem sabe.
OATIX: Não gente, não é por nenhuma razão especial, eu só gosto mesmo. Foi de uma ninhada de um cachorro da minha cunhada. Olha só essa aqui de perfil.
GEMMA: Bela foto! Você que tirou?
OATIX: Sim, mas o mérito aqui é do modelo. Eles são muito bonitos, fotografam perfeitamente. Olha aqui ele na praia. A gente tem que sair com ele duas vezes ao dia, o bicho tem muita energia pra gastar.
ZIMAK: Você fez um "Glinchagram" pra ele?
OATIX:Sim, claro, segue lá: joy_dog467889
ZIMAK:Já to seguindo.
Norgu tira o celular da mão de Oatix.

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PARTE 11
NORGU: Peraí, sem ficar em cima do muro, Sérgio! Eu preciso que fique claro, sem filtro, sem rodeio. Eu sou ou não sou a pessoa mais escrota da empresa?
OATIX: Que isso, Greg... Já te disse o que acho.
NORGU: Numa escala de 0 a 10, o quanto você acha que o que as garotas disseram é verdade?
OATIX:7?
NORGU:7?! 7 é muito... Então você concorda com elas?
OATIX: De certa forma sim.
NORGU: Vocês combinaram isso? É uma pegadinha?
OATIX: Não é minha intenção te incomodar, mas você insistiu...
NORGU: Você consegue me citar algo que eu tenha feito e tenha te incomodado? Algo concreto, por favor, sem acusações generalizadas.
OATIX: Há umas 2 semanas estávamos na sala virtual de reuniões 6WB. Discutíamos a versão beta do "Jogo do carteiro". Estávamos nós 4 e mais umas 30 pessoas. O chefe estava presente.
NORGU: Claro, e o que de tão absurdo eu fiz?
OATIX: Sempre me impressionou a maneira com que você não respeita a autoridade do chefe e mesmo assim ele te respeita.
NORGU: (risos) Boa! Claro que eu respeito, po. É que a minha sinceridade ajuda ele a ser mais sincero também, é um contágio positivo, eu estou ajudando.
ZIMAK: Eu gosto da sua coragem, é uma virtude. O problema é que ela não é usada nem na hora nem no momento certo.
NORGU: Ah tá, você me manda um zap então com uma figurinha de "autorizo" quando existir a conjuntura ideal. Para todas as decisões importantes da minha vida eu vou esperar o seu aval super inteligente.
OATIX: Não é isso que ela quis dizer, Greg...
NORGU: Tá bom, continua aí Sérgio, o que mais aconteceu na reunião?
OATIX: A gente fez uma votação pra saber em que momentos, na versão beta do" jogo do carteiro", o carteiro se assumiria sem máscaras e suportaria toda a pressão social de ser ele mesmo.
NORGU: Sim.
OATIX: Nós estávamos sem dormir há uns 3 dias, programando aquele jogo. Nós queríamos uma solução mais simples, você sabia disso. Porque nossa saúde já estava começando a ficar prejudicada. Todos estávamos visivelmente cansados. Dava para ver as olheiras. E com os pagamentos atrasados em 2 meses por causa da crise. Precisávamos de uma saída mais concisa, mais inteligente, pra evitar um possível burnout.
NORGU: Eu lembro, foi uma fase difícil mesmo.
OATIX: Então, mas você votou a favor de trabalharmos por mais um mês praticamente sem dormir.
NORGU: Ah cara, foi mal. Infelizmente naquele momento a gente precisava desse gás pro jogo ser lançado até o fim do ano. Eu estava pensado como dono naquele momento. Estava pensando nos lucros e consequentemente na gente, claro, porque sabia que esse sacrifício valeria, que o jogo seria um sucesso, principalmente se lançado logo. O que vocês precisam entender é que nós estamos juntos. Que tudo o que eu faço é pro bem de vocês. Eu lembro que nesse dia eu dei até um "puxão de orelha no chefe". Dei uma xingada de leve, falei que ele tinha que dobrar nosso salário depois disso. Com certeza todos queriam falar isso, e fui eu que verbalizei. Foi importante para descomprimir a tensão daqueles dias.
OATIX: Sim, mas porque então votou contra o que tínhamos combinado entre nós antes da reunião?
NORGU: A gente não tinha combinado tanto assim, foi só uma conversa informal, ninguém assinou nada...
OATIX: Mas todos concordaram em votar por uma solução única no jogo, que o personagem se revelasse pra sociedade só no final e não várias vezes ao longo do jogo. Isso multiplicaria nosso trabalho por 1000.
NORGU: Ok, mas o que era melhor para a experiência do usuário no jogo? O quão interessante ia ser toda a multiplicidade e complexidade de escolhas e revelações?
OATIX: Excelente, se nós tivéssemos o triplo da equipe. Nós não aguentávamos mais, Greg. Você não tem noção de que estávamos em exaustão extrema, à base de remédios pra ficar de pé naquela reunião? Todos concordamos em votar contra. Em achar um jeito digno de solucionar o jogo de maneira criativa e interessante, mas sem que precisássemos acabar com nossas vidas por isso.
NORGU: Eu acho que teve um certo exagero nessa situação. A gente aguentava dar um gás maior, eram só mais alguns poucos dias, o ritmo estava muito bom.
ZIMAK: E o mais curioso é que justamente nesse período em que demos o sangue, você conseguiu algumas licenças de saúde. Estranhamente víamos você saudável nas videochamadas, mas ninguém viu você mover um dedo para nos ajudar.
GEMMA: Eu tive a sensação de que você votou contra porque já tinha na cabeça um jeito de não precisar pôr a mão na massa. Achou um jeito de deixar o trabalho nas nossas costas.
NORGU: Claro que não! Eu trabalhei tanto quanto vocês! É que meu caso é específico. Eu tenho vários outros serviços fora também, vocês sabem disso... Pelo meu know-how muitas vezes a minha presença brevemente no local pode alavancar muito a produtividade, é interessante pra empresa me manter lá, mesmo com algumas limitações. Mas é lógico que trabalhei muito também, tanto quanto vocês. É que a gente acha que a grama do vizinho é sempre mais verde, a gente não vê o trabalho que dá para as coisas acontecerem.
OATIX: E outra coisa, fora isso, na hora da votação, por mais que explicássemos pro chefe a nossa situação, você tomava a dianteira na argumentação, usando sempre o "nós" nas suas frases. No fundo estava falando por si só e não pelo que tínhamos combinado como equipe. Suas palavras eram radicalmente contra nós e no entanto pareciam cristalinamente coletivas pelo jeito que você construía o seu discurso. Tanto que as vezes que tentamos interromper e explicar o nosso lado, soou um pouco sem verdade aos ouvidos do chefe. Você falando por nós era muito mais convincente e prendia mais a atenção.
NORGU: Que isso Sérgio... Todos falaram naquele dia, não fui só eu.
OATIX: A maior parte do tempo foi você. Eu fiquei perplexo com a sua capacidade de contradizer tudo aquilo que tínhamos combinado como equipe, como amigos. E o que mais doeu foi ver nos dias seguintes que tudo o que você defendeu com todo o afinco, você não moveu um dedo para executar.
NORGU: Não sabia que você era tão sensivelzinho assim, cara... Vou passar a pegar mais leve contigo. Vou até falar com o pessoal pra não te sobrecarregar demais.
ZIMAK: Tá vendo, é disso que estamos falando, você pega um momento de fraqueza e arruma um jeito de expor isso de maneira humilhante.
OATIX: Deixa, é o jeito dele.
NORGU: Gente, eu estou tentando fazer o melhor possível, eu disse que ia pegar leve com o Sérgio, jamais minha intenção foi a de humilhar.
GEMMA: E mesmo depois da licença você saiu mais cedo todos os dias... Não trabalhou em nenhuma das possibilidades do jogo... Parece que defendeu aquilo porque sabia que não era você que ia se ferrar trabalhando.
NORGU: Olha, não sei com quem vocês andaram falando, e tal. Tem muita gente mal intencionada naquela empresa, que planta fofocas pra destruir os outros.
ZIMAK: Tipo você?
NORGU: Vocês estão dizendo que eu não cumpro as coisas que falo?
ZIMAK: Exatamente isso.
. . .
PARTE 12
GARÇOM: Perdão senhores, gostariam de pedir a janta?
NORGU: Com certeza, mestre. Mas não sei se meus colegas vão querer. Já estão me jantando aqui...
GARÇOM: É mesmo? Rolou uma discussão básica?
NORGU: Exatamente. Fora de propósito né?
GARÇOM: É comum. Como garçom, nunca vi uma conversa, num tempo médio ou longo se manter só amigável. Nem preciso escutar. Às vezes a gente percebe pela linguagem corporal mesmo. Sempre tem momentos de embate, mesmo sendo uma confraternização. Não se sinta premiado, sempre acontece...
OATIX: E você que observa as mesas por todo esse tempo, tem alguma sugestão de alguma maneira de voltarmos para um modo mais tranquilo? Tipo como estávamos no início?
GARÇOM: Vou ser bem sincero. Vocês ultrapassaram uma barreira que eu não sei se tem volta. Mas tenho duas dicas básicas que podem melhorar muito a experiência de vocês. A primeira é pedir o prato do dia, que está maravilhoso. A segunda é mover a mesa.
GEMMA: Como assim mover a mesa?
GARÇOM: Às vezes pra gerar dinamismo e novas formas de comportamento, nada como mudar um pouco a disposição das coisas. Por que a gente não roda um pouco a mesa?
NORGU: Rodar?
GARÇOM: Todo quadrado é também um losango! Se girarmos um pouco essa mesa fica fácil perceber isso. Por favor, levantem-se um instante, pode ser? Ok... Pronto... Abracadabra! Agora vejam como o cenário está diferente! Vou propor um desafio a vocês. Troquem de lugar na mesa, olhem para a pessoa que está à sua frente e falem a primeira coisa que lhes vier à mente, topam?
NORGU: Ok, vamos lá.
GEMMA: Cara, obrigada. Você é diferenciado, vou te dar 5 estrelas aqui. Parabéns mesmo! Quem me dera que os garçons fossem todos assim.
GARÇOM: Que isso! Essa ideia nem é minha, vem de muito tempo. Joguei muito esse jogo quando pequeno. É um jogo mágico. Transformador.
ZIMAK: Estávamos mesmo precisando de uma pessoa de fora pra desviciar essa conversa.
GARÇOM: Aproveitem! Vou pedir 4 pratos do dia pra vocês! Vou solicitar também o aumento da iluminação nessa área do salão para que se enxerguem um pouco melhor. E até mais!
Na nova disposição da mesa em losango, Norgu sentou na antiga cadeira de Gemma, Gemma sentou na cadeira de Zimak, Zimak na cadeira de Oatix e Oatix na cadeira de Norgu.

. . .
PARTE 13
NORGU: (...)
ZIMAK: Oi?
GEMMA: Eu não entendi muito bem, sua voz tá um pouco travada pra mim.
NORGU: Mas vocês estavam balançando a cabeça... Eu to há meia hora falando sozinho, é isso?
OATIX: Deu pra pescar alguma coisa, mas tinha muito ruído, sua voz ficou cortada. É coisa da minha cabeça?
ZIMAK: Não, muita interferência aqui no salão.
NORGU: Vocês tão de sacanagem comigo né? Vocês estão fingindo?
ZIMAK: Não, eu também estou com uma dificuldade enorme em te ouvir Greg, mas achei que fosse um pouco do meu ódio que estava me deixando surda.
GEMMA: Sabe o que é mais estranho?
OATIX: Diga.
GEMMA: Estou com a impressão de que entendo a Manu, o modo de pensar dela, com uma clareza que me assusta.
ZIMAK: Sério? Eu estou sentindo isso em relação ao Sérgio.
OATIX: E eu em relação ao Gregório.
NORGU: Gente, o que está acontecendo? O garçom colocou droga na bebida de vocês?
OATIX: Você não sente nada, Greg?
NORGU: Sinto. Estou triplamente incomodado. Primeiro por vocês terem me acusado injustasmente, depois por terem se recusado a ouvir a minha réplica e agora essa reação bizarra integrativa e sensitiva como se tivessem passado por uma experiência de santo daime, de quebra do véu das aparências.
OATIX: Mas é exatamente isso.
ZIMAK: Greg, me escuta. Pela lógica você deve estar conectado com a Júlia. Depois que a gente rodou a mesa, você sentou na cadeira dela. Todos os outros seguiram esse padrão. Faça um esforço, só falta você pra confirmar essa teoria.
NORGU: Conectado com a Júlia? Como assim vocês estão conectados?
OATIX: Sim, olhe pra Júlia. Olhe com sinceridade e diga o que você vê.
NORGU: Gente, vocês estão me sugestionando. Eu vou acabar enxergando o que o grupo quer que eu enxergue. Que nem aquele experimento famoso onde as pessoas começam a responder o que a maioria está respondendo, por conformidade social, independente da lógica. Daqui a pouco vou começar a ver umas maluquices, porque vocês estão ficando bastante convincentes.
OATIX: Apenas não racionalize tanto. Eu sei que é difícil. É difícil pra mim também aceitar, mas está acontecendo, cara, não dá para negar. É como se eu pudesse enxergar com os seus olhos, é sério.
NORGU: Bom saber que eu tenho um doador de córnea altamente compatível.
OATIX: Greg, sem compromisso, fale algo sobre a Júlia, a primeira coisa que vem na sua cabeça.
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