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JOGOS OCULTOS
PARTE 1
Neste fim de ano, a "Disguise Games", uma empresa de jogos digitais, resolveu proporcionar uma experiência bastante inusitada aos seus funcionários: um encontro presencial.
Depois de tantos imprevistos, problemas técnicos, noites em claro, brigas, vazamentos de dados e até invasões hacker, era justo que as conquistas fossem celebradas. Até porque conseguiram a proeza de lançar um jogo antes do deadline. E sem bugs.
O problema é que para uma empresa criada por nerds que amam o isolamento social sobre todas as coisas, nada pareceu mais rústico e fora de propósito do que um encontro face a face, em carne e osso, na mesma mesa, no mesmo ar, no mesmo metro quadrado.
Era como ser chamado a escutar vinil ou receber um desconto-relâmpago de curso de datilografia. Para quê desenterrar ossadas antigas se o novo estava vicejando?
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PARTE 2
O chefe ousou nesta manhã tocar a campainha de cada um dos funcionários, em suas residências físicas mesmo, de alvenaria, não as de bits. Vestido de carteiro, entregou convites personalizados escritos à mão. Queria gerar uma experiência tão real que forçasse as pessoas a saírem do conforto das telas.
A performance fazia referência ao último game da equipe: “Cartas Marcadas”. Nele, um carteiro resolve interceptar as cartas dos moradores para reescrever. A fraude é descoberta e considerada imperdoável pelos locais. A cidade então se fecha para caçar o impostor. Agora ele deve decidir em que contexto e para quem se revelar. Ou apostar na sobrevivência à custa de disfarces.
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PARTE 3
Mas o jogo mais difícil de todos é o jogo da vida real. Esse é realmente difícil de zerar. O frio na barriga foi unânime mas curiosamente todos confirmaram presença no jantar.
Manu foi a primeira a chegar, seguida de Sérgio, Júlia e Gregório. O garçom deu as boas vindas com um sorriso acolhedor. Mostrou as mesas reservadas e fez um gesto de cumprimento caricatural, rodando a mão direita três vezes, em giros no sentido horário. Depois puxou um lenço de pano do bolso e sacudiu num espano grave e sonoro. Em seguida curvou-se para baixo e estendeu uma das pernas e os dois braços até se equilibrar na excêntrica pose.
Os 4 se entreolharam segurando o riso o quanto puderam.
O garçom levantou com altivez, ajeitou sua roupa e foi atender outra mesa.
NORGU: Bela introdução, não? Vamos beber alguma coisa? O momento definitivamente está pedindo.
GEMMA: (riso exagerado) Já quer aquecer as turbinas né Gregório? Eu vou esperar mais um pouco o pessoal chegar, senão acabo bebendo demais. Sou mais lenta pra essas coisas.
OATIX: Vai no seu ritmo, Júlia... Eu vou acompanhar o Greg na breja.
ZIMAK: Acho que vou tomar só uma água com gelo e limão por enquanto.
Zimak destrava o celular e começa a passar as telas repetidamente em loop. Lê as mensagens pendentes e digita alguma coisa. Ajeita um pouco o penteado usando a câmera como espelho.
NORGU: Grande! Duas cervejas e uma água com gelo e limão, por favor!
GARÇOM: Claro!
O garçom desabotoa o colete. Pressionando com uma das mãos, mantém um lado do colete rente ao corpo e abre o outro lado, revelando na parte interna vários bolsos contendo uma variedade de bloquinhos de notas de todos os tipos.
GARÇOM: Por favor, escolha o que mais lhe agrada.
Os 4 se entreolharam novamente, agora um pouco assustados, julgando o garçom um tanto insano.
Norgu fez a escolha mais óbvia. Optou pelo bloco com estampa de dinossauro, que lhe remeteu ao mascote da "Disguise". Aquele que ele mesmo tinha ajudado na concepção, principalmente no desenho do logo, em que o simpático dava uma piscadela com um dos olhos e fazia um sinal de positivo com o polegar, envolto no pescoço por uma guirlanda estilizada de fios de cobre.
O garçom abotoou o colete e começou a anotar o pedido por uma duração estendida, nada condizente com uma solicitação tão simples e breve de apenas 3 bebidas.
NORGU: Tudo bem aí, meu amigo? Quer que a gente repita?
GARÇOM: Não, só um instante, já estou quase no fim.
Ele não parava de escrever, chegando a virar as páginas algumas vezes. Zimak disfarçadamente filmou a cena no celular. Oatix e Norgu gargalharam já sem disfarçar.
GEMMA: Mas o que você tanto escreve?
GARÇOM: É muita informação, minha amiga, é melhor registrar senão esqueço. Vai demorar um pouco, tá? Mas vai chegar... A casa está cheia hoje, espero que entendam. Mas nossa comida é a melhor da cidade, isso posso garantir, vai compensar!
GEMMA: Tudo bem, estamos esperando o resto do pessoal mesmo.Tem muita gente pra vir ainda.
OATIX: Vai no seu ritmo, mestre, vai no seu ritmo.
O garçom fez uma mímica, simulando uma pequena virada de bateria e dublando os sons dos tons e pratos com a boca.
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PARTE 4
NORGU: E então, há quanto tempo não saíam de casa hein?
OATIX: Acredito que uns 10 anos.
GEMMA: É bem por aí mesmo... Mas é muito bom ver vocês! Estou muito feliz com isso. Nem lembrava dessa minha saudade de olho no olho, de sentir essa energia. É muito bom!
ZIMAK: Às vezes né...
NORGU: A Manu nem queria vir, só veio só para espiar.
ZIMAK: Nada, eu quis vir mesmo. Achei bastante criativo. Queria ver se ainda sabemos nos relacionar depois de tanto tempo.
Todos riem ao mesmo tempo. A mesa estremece um pouco e a toalha desalinha. O garçom passa rapidamente , ajeita a toalha e aproveita para trazer cestos com temperos e talheres.
OATIX: Obrigado, meu amigo.
GARÇOM:Que nada!
OATIX: É uma satisfação enorme ver todo mundo reunido. Muito legal mesmo a iniciativa.
GEMMA: Que bom poder ver vocês reais assim, sem delay. Agora ninguém reclama mais de não estar sendo ouvido não é mesmo? Agora não tem desculpa pra gente não se ouvir. É bem legal mesmo. Muito bom, estou adorando! Legal demais, muito bom.
ZIMAK: Eu to sentindo falta do enquadramento peculiar do chefe.
OATIX: É verdade, com o perdão da sinceridade, aquele é incorrigível.
ZIMAK: Logo ele que fez aquela cartilha de boas práticas nas videochamadas... Não cumpria uma vírgula da própria cartilha...
OATIX: Pois é...
NORGU: Eu dei alguns toques nele, mas ele sempre dá um jeito de achar um ângulo estranho, no fundo ele gosta, não consegue abrir mão.
GEMMA: Vai ver ele quer aparecer...
NORGU: Pode ser
OATIX: Ou é aquele papo de "vou gerar crises para motivar a criatividade da equipe"
ZIMAK: Putz, nem me fale.
NORGU: Pelo menos uma vez por ano podemos marcar um encontro assim, o que acham?
GEMMA: Sim, precisamos fazer isso mais vezes, com certeza.
NORGU: Vamos marcar sim, só não sei se a melhor opção é repetir o lugar. A bebida tá demorando demais.
GEMMA: Sim, muita demora.
OATIX: (olha o relógio) Faz um bom tempo que pedimos já.
ZIMAK: Estranho, olha aqui o comentário na internet. "Atendimento mais rápido da minha vida. Garçons profissionais e comida excelente"
NORGU: Garçons profissionais? Seria profissionais de circo?
( gargalhada coletiva)
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PARTE 5
Oatix dobrou pacientemente as mangas da camisa social. Zimak puxou o celular mais para perto de si. Gemma olhou para os lados.
GEMMA: Gente, o pessoal não costuma se atrasar. Será que aconteceu alguma coisa?
NORGU: Não costumam se atrasar virtualmente né? Agora que estamos conhecendo a faceta presencial. Espero que não atrasem demais. Não posso demorar muito. Daqui vou direto fazer a manutenção de uma rede, tenho dois projetos pessoais para programar e uma empresa pra rodar.
OATIX: Eita! Não sei como você dá conta disso tudo. A Disguise já me toma tempo suficiente.
NORGU: É prática, quando engata tudo que tem que fazer acaba indo.
OATIX: E a empresa, como tá a sua empresa?
NORGU: Cara, não podia estar melhor. Estamos crescendo demais. 20 funcionários. Na liderança, eu e meu sócio. Te falei que estou com um sócio agora né?
OATIX: Sim, você comentou uma vez.
NORGU: E pensar que tudo começou numa viagem ao Havaí... Viagem ótima... Vocês precisam viajar pra lá um dia, sério... Mas independente da beleza do lugar, olha a minha sorte: naquele avião, um japonês sentou do meu lado. Conversamos a viagem inteira, e por alguma coincidência estranha, percebemos que tínhamos habilidades complementares. Estávamos alinhados com os mesmos valores. Putz, praticamente fechamos a parceria ali. Viramos sócios e grandes amigos também. Fundamos a primeira empresa de viagem virtual do hemisfério sul. Vamos começar a vender nossos pacotes em breve, já está tudo engatilhado, quase saindo.
GEMMA: Legal, é bom quando as coisas se encaixam assim.
ZIMAK: Interessante... voos para lugar nenhum?
NORGU: Tava demorando a ironia.
ZIMAK: É só uma observação... Viagem é uma das poucas coisas que eu ainda gosto de fazer pessoalmente.
NORGU: Tudo bem, respeito sua visão. Mas o que vocês tem que entender é que o público em geral não tá pensando assim. Não é o que mostram os números. Eu pesquiso há anos o mercado de viagens. Vocês precisam se atualizar, porque... Só um minuto... vou chamar outro garçom para ver se acelera essa nossa bebida.
Norgu levanta a mão. Vários garçons passam atarefados, ignorando a solicitação. Atrás dele sopra um vento gelado na altura do pescoço.
GARÇOM: Calma, eu estou de volta. As coisas sempre chegam no devido momento. Essa noite é bem especial pra vocês não é mesmo? Festa de fim de ano da empresa?
ZIMAK: Isso.
NORGU: Sim.
GARÇOM: Certo, aproveitem! Boa sorte!
O garçom posiciona um balde de gelo no centro da mesa. Abre a garrafa de cerveja envolta em flocos glaciais cinematográficos e serve oscilando a altura do jato para atingir a proporção ideal da espuma. Repousado na bandeja, está um copo d´água com gelo e limão praticamente transparente. Era possível sentir a refrescância com os olhos. A sinestesia ao alcance de todos. Pôs um guardanapo espesso de alta absorção na base do copo, de modo que pudesse resistir a pelo menos 40 minutos de exposição sem murchar.
GEMMA: Eu estou deslumbrada com esse tratamento de primeira classe, esse cuidado todo. Devia ter pedido alguma coisa também.
GARÇOM: Claro, fique à vontade. Aceita uma sugestão da casa?
GEMMA: Uma bebida?
GARÇOM: Sim, um blend de chá refrescante de fabricação própria.
GEMMA: Por favor, pode trazer!
O garçom pisca com o olho e faz um som de click com a língua. Se retira rápida e precisamente como se tivesse entrado por um alçapão secreto.
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PARTE 6
GEMMA: Lembrei também de uma viagem que fiz há um tempo... intercâmbio no Canadá... como isso foi importante pra mim, vocês não têm ideia... Depender de falar inglês pra viver, trabalhar em hostel... Aprendi demais! Recomendo muito, como experiência de vida, sabe. Vocês nunca foram né? (negam com a cabeça)
GEMMA: Mesmo, acho que todo mundo tinha que passar por isso uma vez na vida. Ainda mais pra mim que sou uma pessoa muito expressiva, valeu muito à pena. Mas tem que falar, tem que querer se comunicar.
ZIMAK: Acho que você é a pessoa mais fluente em inglês aqui da "Disguise".
GEMMA: Sim! Os aprendizados foram para a vida toda. Foi nessa época que eu tive certeza de que ia trabalhar com programação também. Percebi que eu podia unir meu lado técnico com a minha facilidade de comunicação. Era também uma excelente chance de trabalhar em qualquer lugar do mundo, prolongando essa sensação boa e desafiante de ser meio nômade, vez ou outra morar num país diferente, trabalhando à distância. Sempre tem lugar pra um bom programador.
OATIX: Muito legal. E você ainda tá marcando os países que visitou?
GEMMA: Sim! você lembra ?!
OATIX: Como eu ia esquecer? Nas videochamadas, ao fundo, sempre víamos aquele mapa-mundi na sua parede, com o "x" nos países que você já conheceu.
GEMMA: Exatamente! Sou desbravadora do mundo! É bom saber que pisei em vários países, em vários continentes. É bom ter amigos em qualquer lugar. É reconfortante.
ZIMAK: E essas amizades continuam? Ou só duram enquanto você fica no país?
GEMMA: Continua, claro! Sempre nos falamos nas redes sociais. Amizade sempre soma. Meu número de amigos no "Wastebook" é uma curva ascendente. É muito bom, muito legal.
ZIMAK: Júlia e Greg são as raridades sociáveis dessa empresa...
NORGU: Agradeço o elogio.
GEMMA: Idem, querida! Muito obrigada!
ZIMAK: Mas em termos de seguidores a Júlia é imbatível. Eu sempre acho engraçado o susto que as pessoas levam quando descobrem os números astronômicos das redes sociais dela. De uma hora pra outra é como se mudassem o tratamento contigo, depois que sabem de seu status de influencer. Ficam um pouco assustadas, acuadas... Aquele "shift" na cabeça, quando você passa de uma pessoa comum a alguém especial. E essa mágica se dá por critérios quantitativos. Os números é que te dão valor.
GEMMA: Pois é, mas é bobeira... Todo mundo pode crescer uma rede social se cultivar bem. Todos somos iguais.
NORGU: Dá um workshop pra gente, Júlia.
GEMMA: É uma ideia! Você pode propor pro chefe hein? Ele ouve as coisas que você fala.
NORGU: Vou falar com ele sim. Mas provavelmente eu não vou poder comparecer. Você sabe que minha agenda não tem pausa.
GEMMA: Tudo bem, mas sei que torceria por mim à distância
NORGU: Sem dúvidas! O que a gente quer é que a equipe esteja a todo o vapor, com todo o seu potencial em prática. Você só trabalha na Disguise?
GEMMA: Sim.
NORGU: Então, po! Pelo que vejo você faz poucas horas líquidas lá. Aproveita esse tempo aí! Poderia estar crescendo bem mais!
O guardanapo de alta absorção que mantinha o copo de Zimak em encanto de asseio começa a alagar. Zimak contrai as mãos por baixo da mesa e dissipa tensões com os dedos médio e indicador arranhando a coxa.
O garçom recolhe discretamente da despensa os guardanapos de melhor qualidade , coloca dentro da gaveta do armário de louças e fecha com uma chave-mestra ocultada nas mangas.
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PARTE 7
NORGU: Júlia, aí vai um desafio: Se você tivesse que escolher entre amizade e conhecimento, o que você escolheria?
ZIMAK: Lá vem ele com os joguinhos...
NORGU: (risos) Claro, é divertido po!
GEMMA: Mas não tem como te responder assim, não tem como separar as duas coisas. A amizade faz a gente aprender e o aprendizado leva a mais amizades.
NORGU: Vai Júlia, escolhe apenas um, vamos prezar pelo raciocínio binário um pouco.
GEMMA: A gente já faz isso demais, não? Por quê fazer mais disso agora?
NORGU: Porque é divertido, não estamos aqui basicamente pra nos divertir?
GEMMA: Então me responde você, como você vê os relacionamentos na "Disguise"?
NORGU: Como assim?
GEMMA: Você acha que é possível construir um laço verdadeiro no ambiente de trabalho?
NORGU: Claro, o que estamos fazendo aqui? Eu considero vocês amigos, com certeza. Beberia todo o fim de semana com vocês, se vivêssemos numa época um pouco menos digital. Mas podemos fazer dessa experiência um gatilho pra alguns encontros mais lights assim, isso pode fortalecer ainda mais essa rica amizade. Fortalecer o espírito de equipe ajuda demais, ajuda muito.
OATIX: Boa, vamos colocar essa ideia pra funcionar sim.
NORGU: Sim, podemos variar, nos encontrar fora das plataformas da empresa, pra alimentar esse contato. Uma vez ou outra, fim de tarde, rapidinho... dá pra gente se ver sim. A Manu pode finalmente deixar a timidez de lado e nos mostrar também aqueles artesanatos que ela posta no "Glinchagram".
OATIX: Que artesanato?
GEMMA: Você faz artesanato?
ZIMAK: (voz trêmula) Às vezes... quer dizer... são só alguns objetos de decoração.
GEMMA: Olha! Eu sempre achei a Manu a mais high-tech de todas! Jamais imaginei ela fazendo trabalho manual. Mostra pra gente?
ZIMAK: Mas como você descobriu isso, Greg?
NORGU: No "Glinchagram" ora, não acabei de falar?
ZIMAK: Mas a minha conta é fechada.
NORGU: Linda, não é à toa que eu virei o chefe de programação do nosso setor. Nenhum perfil é privado pra mim.
ZIMAK: Você está confessando que invadiu a minha conta?!
NORGU: Não, claro que não. Eu tenho um bot que destrava pra mim tudo que é rede social privada. É uma decisão genérica, não tem nada a ver contigo especificamente. É apenas por razões de trabalho. Imagine se eu não pudesse navegar livremente na internet? Pra quem quer aprender mesmo e se diferenciar, tem que estar a par de tudo. Imagina o tempo que eu gastaria pedindo autorização... Depois até a pessoa ver que eu pedi autorização e me autorizar a ter acesso é tempo demais, burocracia demais. Minha rotina já é muito apertada! Lógico que eu não indico que qualquer pessoa faça isso, vamos deixar bem claro... Tem que ter bom senso. É como um terapeuta que ouve no consultório vários relatos pessoais. Ele teve acesso privilegiado àquilo, não vai usar pra outras razões que não sejam profissionais. Pelo menos é o que se espera, é o bom senso.
ZIMAK: Mas você acaba de dar uma informação privada minha como se fosse pública.
NORGU: É besteira, só comentei porque me veio à mente agora, pra puxar assunto. Não lembrava que sua rede era privada.
ZIMAK: Se está escrito privada é porque é privada.
NORGU: Não te falei que no meu computador não tem mais essa diferenciação? Os bots "desprivatizam" tudo pra mim. Mas desculpa se te incomodou. Qual o problema po? Seu artesanato é muito bom! Você deveria mostrar.
ZIMAK: Se eu quisesse mostrar eu tinha colocado no público.
NORGU: Se você não quisesse mostrar você não colocava em lugar nenhum.
ZIMAK: Greg, eu não gostei disso. Você foi antiético comigo.
OATIX: Calma gente, sem briga galera, sem briga.
ZIMAK: O que mais eu posso esperar de você agora? Que outras coisas sabe de mim?
NORGU: Relaxa, cedo ou tarde tudo o que você coloca na internet aparece. É a lei.
GEMMA: Mas concordo com ela, se é privado, tinha que ficar no privado.
OATIX: Galera vamos mudar de assunto. Amanhã já entramos de férias... Vamos falar de coisa boa, o que vão fazer de bom?
NORGU: Se você não tem nada a esconder é só relaxar. Relaxa os ombros, respira. Eu não tenho mais nenhuma informação extra de você, Manu. Tenho mais o que fazer, meu dia é lotado, não tenho tempo de te stalkear. Foi alguma coisa que apareceu na minha timeline e lembrei agora, foi só pra puxar assunto.
ZIMAK: Você sempre faz isso.
NORGU: Isso o quê?
ZIMAK: Você sabe, você sempre faz isso.
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PARTE 8
Os garçons se mobilizam para tirar as placas de “reservado". Desfaz-se a longa mesa formada pela emenda de várias mesas quadradas enfileiradas.
GARÇOM: Com licença, queridos, só explicando para vocês. Nossas reservas são canceladas automaticamente depois de 1 hora sem o comparecimento. Se os seus colegas vierem, terão que ficar na fila e ocupar mesas separadas, ok? Mas para vocês não muda nada, vocês 4 podem ficar tranquilos nesta mesa.
Poderiam simplesmente sair, mas havia uma força de sucção que os mantinha praticamente colados àquela mesa. Em câmera lenta, com os gestos congelados, tomavam longos e demorados goles. Uma luta contra resistências misteriosas. A presença lhes escapava por pacotes de dados indecifráveis. A temida sensação de estar sem ser. Reconhecer-se bem mais virtual que real. Saudade da luz das telas nutrindo as retinas. Saudade do poder de trocar de aba. Estavam como insetos noturnos, levados por rotas indesejáveis, porque não sabiam reconhecer a verdadeira luz da lua.
O garçom assistia à cena com atenção. Pediu que apressassem o preparo na cozinha. Levou o chá com especiarias e bateu o fundo do copo propositadamente com certa força sobre o tampo da mesa, para que o barulho os tirasse do torpor. Não foi suficiente. Com a bandeja metálica vazia, o garçom refletiu as luzes dos lustres e direcionou para a a altura da visão dos 4. Eles coçaram os olhos e foram voltando à si.
Gemma foi a pioneira da retomada, com um sorriso rasgado, lutando contra a constipação emocional.
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PARTE 9
NORGU: Então galera, como vai ser? Vocês vão ficar?
GEMMA: (finge que está ouvindo e sorri com certa estranheza) Ahm? Desculpa, não estava ouvindo. Tava prestando atenção na música ambiente.
NORGU: Eu perguntei se vocês pretendem ficar mais um pouco.
GEMMA: Por mim ficamos. Vamos experimentar a comida. Parece boa!
ZIMAK: Acho que agora deixou de ser um encontro de empresa e passou a ser um encontro de gente. Isso é muito fora da caixa. Vou ficar um pouco mais sim.
OATIX: Se pararmos pra pensar é a primeira vez que isso acontece. De ficarmos em contato assim, só nós quatro.
GEMMA: Aconteceu sim, não lembra do segundo ano de reuniões online?
OATIX: Ah é, pode crer. Todos foram saindo da chamada um a a um e só sobramos nós 4... Verdade. Mas não durou muito tempo... Trocamos uma meia dúzia de palavras e saímos. Foi até um pouco constrangedor, a gente mal se conhecia na época.
NORGU: Até que conversamos bastante para os nossos padrões usuais. Sempre fomos do estilo "cada um no seu quadrado". Foi ali que a Manu finalmente relaxou no trabalho. Sempre com aquela seriedade militar um pouco assustadora... Foi bom vê-la sem farda. ( risos)
ZIMAK: É, cada vez mais eu tenho vontade de mandar fazer um alvo com a sua cara pra praticar tiro esportivo.
NORGU: Calma Manu, não quis te ofender.
ZIMAK: Claro que quis, Gregório. Você sempre faz isso. Não só espalhou pra todos tudo aquilo que eu não queria espalhar, como inventou vários detalhes que nunca aconteceram. Se coloca como o maior entendedor de todas as coisas do mundo, faz memes depreciativos e fofocas expondo nossos defeitos pra pessoas que você sabe que vão espalhar mais ainda. Você é um manipulador. Você quer se manter no topo, você não tem escrúpulo.
NORGU: Que arsenal de acusações, ahm? Não sei se eu mereço isso. Eu achei que estava te enturmando. Você sempre foi tão fechada no escritório, precisava de uma mãozinha, eu sentia isso.
ZIMAK: E todas as suas histórias falsas sobre todos foram pra enturmar quem? Ou pra manipular a narrativa e sempre sair por cima? Ou para ter controle, para diminuir os outros?
OATIX: Calma gente, isso aqui é uma confraternização. Vamos esquecer essas mágoas. Já passou.
NORGU: Então me conta pelo menos uma história que eu inventei. Você ironizou os meus "voos para lugar nenhum", mas é você que não vai aterrissar em nada dessa forma. Isso é paranoia, eu só abri o caminho pra te enturmar. E te ajudei. Se não fosse por mim, você corria o risco até de sofrer algum bullying , já começava a ser chamada de travadinha. Eu cortei com brincadeira, fiz os memes sim, mas isso só tornou o que poderia ser ofensa algo mais leve, pra todos se divertirem.
ZIMAK: A custa de me desmerecer.
NORGU: Desmerecer? Me fale então, o que eu desmereci?
ZIMAK: Você sempre faz isso também. Você é um programa de computador! Você é mais previsível do que gostaria de ser. Quando toca em determinados assuntos, reage como que por condicionamentos e organogramas mapeáveis. Quer que as pessoas citem o óbvio e insiste para cansar o oponente. Você nunca vai admitir suas falhas de caráter. E sempre tem uma resposta pronta na ponta da língua, brilhantemente pensada, com floreios retóricos, explicações perfeitas, citações de livros, eloquências. Adora domar a platéia com seu entretenimento barato. E o pior, consegue.
NORGU: Eu tenho uma dica para você: se valoriza mais, cara! Cada um tem sua opinião e precisa defender ela custe o que custar, a vida é assim mesmo. Se você não aprendeu isso não sei o que está fazendo nesse planeta. Se eu me expresso melhor que você isso deveria ser motivo de orgulho pro nosso time e não de inveja. Eu deveria ser uma inspiração pra você.
ZIMAK: Eu jamais invejaria você, Gregório, você sabe disso. Eu te acho um profundo impostor.
GARÇOM: Com licença, mais uma dose?
NORGU: Por favor, mestre. Vai Manu?
ZIMAK: Se eu quiser eu vou pedir, Gregório.
NORGU: Tudo bem, então pronto. Vê duas doses pra mim.
Com Norgu de costas, o garçom olha para Zimak e faz um gesto com as mãos simulando um corte no pescoço, com olhos arregalados , lábios inferiores contraídos pra baixo, e veias do pescoço expandidas.
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PARTE 10
GEMMA: É verdade...
ZIMAK: Como assim?
GEMMA: To concordando contigo, Manu. Também acho que o Greg exagera.
NORGU: Sério? Vocês vão fazer um combo pra me derrubar? E sem nenhum gole de álcool? Vocês me surpreendem… Não querem pedir algo pra beber mesmo?
ZIMAK: Se já tá pegando fogo sem álcool, imagina com.
GEMMA: Ninguém se sente à vontade de ficar perto de você, na verdade. Você sempre quer mostrar que sabe muito mais que todos.
ZIMAK: E precisamos reconhecer que muitas vezes você sabe muito, não tem como negar, mas você põe tudo isso a perder ao humilhar as pessoas. Você fica pequeno, fica nojento...
NORGU: (deboche) Ok, to ouvindo as fake news!
GEMMA: E faz questão de ficar sondando a fragilidade dos outros para expor em público no momento mais humilhante possível.
NORGU: Vocês surtaram! Quando eu fiz isso? Me cita um caso, só um caso concreto!
GEMMA: Deixa o trabalho pesado pros outros, sempre acha uma desculpa para trabalhar menos e parecer que está trabalhando mais, pra quem vê de fora. O chefe sempre acredita em você porque você envolve num papo legal. Mas você sempre inventa as histórias mais mirabolantes para sair por cima. E nós sempre saímos prejudicados.
NORGU: Eu quero um caso concreto de quando eu fiz isso, que dia, que horas, em que contexto.
GEMMA: É óbvio que eu não anotei o dia e a hora.
NORGU: Claro que não, porque nunca aconteceu.
ZIMAK: Você está ouvindo o que a gente tá falando? A pior forma de negação é não olhar o óbvio.
NORGU: Tá bom, vamos pedir uma terceira opinião. Sérgio, você que sempre foi um cara sensato e que eu respeito pra caramba. Alguma vez já fiz essas coisas que elas estão falando?
OATIX: Olha...
NORGU: Pode falar, eu to aberto a críticas.
OATIX: Greg... Acho que o que elas estão querendo dizer é que você, como se diz, "já chega com o pé na porta". Mas você é um cara legal, tem uma assertividade muito boa. Vamos falar de outra coisa, esse assunto não vai dar em coisa boa. Vocês já viram as fotos do meu Husky Siberiano? Olha como ele cresceu. (mostra fotos no celular)
GEMMA: Que lindo! Eu adoro Husk Siberiano!
OATIX: Eles têm uma pelagem muito grossa pra suportar o frio, mas se adaptam ao calor também. São versáteis. E meio individualistas também. O meu já fugiu de casa uma vez... Eles tem essa coisa de bicho solto, exploratória.
GEMMA: Hum... Já me identifiquei. Dizem que o cachorro é um reflexo do dono. Você se sente assim também?
OATIX: Assim como?
GEMMA: Com vontade de fugir em alguns momentos.
NORGU: (riso debochado) O Sérgio? O cara mais estável que conheci? Que eu saiba ele quer permanecer, não sair.
GEMMA: Vai ver uma parte dele é Husky. Uma parte que ele nem sabe.
OATIX: Não gente, não é por nenhuma razão especial, eu só gosto mesmo. Foi de uma ninhada de um cachorro da minha cunhada. Olha só essa aqui de perfil.
GEMMA: Bela foto! Você que tirou?
OATIX: Sim, mas o mérito aqui é do modelo. Eles são muito bonitos, fotografam perfeitamente. Olha aqui ele na praia. A gente tem que sair com ele duas vezes ao dia, o bicho tem muita energia pra gastar.
ZIMAK: Você fez um "Glinchagram" pra ele?
OATIX:Sim, claro, segue lá: joy_dog467889
ZIMAK:Já to seguindo.
Norgu tira o celular da mão de Oatix.
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PARTE 11
NORGU: Peraí, sem ficar em cima do muro, Sérgio! Eu preciso que fique claro, sem filtro, sem rodeio. Eu sou ou não sou a pessoa mais escrota da empresa?
OATIX: Que isso, Greg... Já te disse o que acho.
NORGU: Numa escala de 0 a 10, o quanto você acha que o que as garotas disseram é verdade?
OATIX:7?
NORGU:7?! 7 é muito... Então você concorda com elas?
OATIX: De certa forma sim.
NORGU: Vocês combinaram isso? É uma pegadinha?
OATIX: Não é minha intenção te incomodar, mas você insistiu...
NORGU: Você consegue me citar algo que eu tenha feito e tenha te incomodado? Algo concreto, por favor, sem acusações generalizadas.
OATIX: Há umas 2 semanas estávamos na sala virtual de reuniões 6WB. Discutíamos a versão beta do "Jogo do carteiro". Estávamos nós 4 e mais umas 30 pessoas. O chefe estava presente.
NORGU: Claro, e o que de tão absurdo eu fiz?
OATIX: Sempre me impressionou a maneira com que você não respeita a autoridade do chefe e mesmo assim ele te respeita.
NORGU: (risos) Boa! Claro que eu respeito, po. É que a minha sinceridade ajuda ele a ser mais sincero também, é um contágio positivo, eu estou ajudando.
ZIMAK: Eu gosto da sua coragem, é uma virtude. O problema é que ela não é usada nem na hora nem no momento certo.
NORGU: Ah tá, você me manda um zap então com uma figurinha de "autorizo" quando existir a conjuntura ideal. Para todas as decisões importantes da minha vida eu vou esperar o seu aval super inteligente.
OATIX: Não é isso que ela quis dizer, Greg...
NORGU: Tá bom, continua aí Sérgio, o que mais aconteceu na reunião?
OATIX: A gente fez uma votação pra saber em que momentos, na versão beta do" jogo do carteiro", o carteiro se assumiria sem máscaras e suportaria toda a pressão social de ser ele mesmo.
NORGU: Sim.
OATIX: Nós estávamos sem dormir há uns 3 dias, programando aquele jogo. Nós queríamos uma solução mais simples, você sabia disso. Porque nossa saúde já estava começando a ficar prejudicada. Todos estávamos visivelmente cansados. Dava para ver as olheiras. E com os pagamentos atrasados em 2 meses por causa da crise. Precisávamos de uma saída mais concisa, mais inteligente, pra evitar um possível burnout.
NORGU: Eu lembro, foi uma fase difícil mesmo.
OATIX: Então, mas você votou a favor de trabalharmos por mais um mês praticamente sem dormir.
NORGU: Ah cara, foi mal. Infelizmente naquele momento a gente precisava desse gás pro jogo ser lançado até o fim do ano. Eu estava pensado como dono naquele momento. Estava pensando nos lucros e consequentemente na gente, claro, porque sabia que esse sacrifício valeria, que o jogo seria um sucesso, principalmente se lançado logo. O que vocês precisam entender é que nós estamos juntos. Que tudo o que eu faço é pro bem de vocês. Eu lembro que nesse dia eu dei até um "puxão de orelha no chefe". Dei uma xingada de leve, falei que ele tinha que dobrar nosso salário depois disso. Com certeza todos queriam falar isso, e fui eu que verbalizei. Foi importante para descomprimir a tensão daqueles dias.
OATIX: Sim, mas porque então votou contra o que tínhamos combinado entre nós antes da reunião?
NORGU: A gente não tinha combinado tanto assim, foi só uma conversa informal, ninguém assinou nada...
OATIX: Mas todos concordaram em votar por uma solução única no jogo, que o personagem se revelasse pra sociedade só no final e não várias vezes ao longo do jogo. Isso multiplicaria nosso trabalho por 1000.
NORGU: Ok, mas o que era melhor para a experiência do usuário no jogo? O quão interessante ia ser toda a multiplicidade e complexidade de escolhas e revelações?
OATIX: Excelente, se nós tivéssemos o triplo da equipe. Nós não aguentávamos mais, Greg. Você não tem noção de que estávamos em exaustão extrema, à base de remédios pra ficar de pé naquela reunião? Todos concordamos em votar contra. Em achar um jeito digno de solucionar o jogo de maneira criativa e interessante, mas sem que precisássemos acabar com nossas vidas por isso.
NORGU: Eu acho que teve um certo exagero nessa situação. A gente aguentava dar um gás maior, eram só mais alguns poucos dias, o ritmo estava muito bom.
ZIMAK: E o mais curioso é que justamente nesse período em que demos o sangue, você conseguiu algumas licenças de saúde. Estranhamente víamos você saudável nas videochamadas, mas ninguém viu você mover um dedo para nos ajudar.
GEMMA: Eu tive a sensação de que você votou contra porque já tinha na cabeça um jeito de não precisar pôr a mão na massa. Achou um jeito de deixar o trabalho nas nossas costas.
NORGU: Claro que não! Eu trabalhei tanto quanto vocês! É que meu caso é específico. Eu tenho vários outros serviços fora também, vocês sabem disso... Pelo meu know-how muitas vezes a minha presença brevemente no local pode alavancar muito a produtividade, é interessante pra empresa me manter lá, mesmo com algumas limitações. Mas é lógico que trabalhei muito também, tanto quanto vocês. É que a gente acha que a grama do vizinho é sempre mais verde, a gente não vê o trabalho que dá para as coisas acontecerem.
OATIX: E outra coisa, fora isso, na hora da votação, por mais que explicássemos pro chefe a nossa situação, você tomava a dianteira na argumentação, usando sempre o "nós" nas suas frases. No fundo estava falando por si só e não pelo que tínhamos combinado como equipe. Suas palavras eram radicalmente contra nós e no entanto pareciam cristalinamente coletivas pelo jeito que você construía o seu discurso. Tanto que as vezes que tentamos interromper e explicar o nosso lado, soou um pouco sem verdade aos ouvidos do chefe. Você falando por nós era muito mais convincente e prendia mais a atenção.
NORGU: Que isso Sérgio... Todos falaram naquele dia, não fui só eu.
OATIX: A maior parte do tempo foi você. Eu fiquei perplexo com a sua capacidade de contradizer tudo aquilo que tínhamos combinado como equipe, como amigos. E o que mais doeu foi ver nos dias seguintes que tudo o que você defendeu com todo o afinco, você não moveu um dedo para executar.
NORGU: Não sabia que você era tão sensivelzinho assim, cara... Vou passar a pegar mais leve contigo. Vou até falar com o pessoal pra não te sobrecarregar demais.
ZIMAK: Tá vendo, é disso que estamos falando, você pega um momento de fraqueza e arruma um jeito de expor isso de maneira humilhante.
OATIX: Deixa, é o jeito dele.
NORGU: Gente, eu estou tentando fazer o melhor possível, eu disse que ia pegar leve com o Sérgio, jamais minha intenção foi a de humilhar.
GEMMA: E mesmo depois da licença você saiu mais cedo todos os dias... Não trabalhou em nenhuma das possibilidades do jogo... Parece que defendeu aquilo porque sabia que não era você que ia se ferrar trabalhando.
NORGU: Olha, não sei com quem vocês andaram falando, e tal. Tem muita gente mal intencionada naquela empresa, que planta fofocas pra destruir os outros.
ZIMAK: Tipo você?
NORGU: Vocês estão dizendo que eu não cumpro as coisas que falo?
ZIMAK: Exatamente isso.
. . .
PARTE 12
GARÇOM: Perdão senhores, gostariam de pedir a janta?
NORGU: Com certeza, mestre. Mas não sei se meus colegas vão querer. Já estão me jantando aqui...
GARÇOM: É mesmo? Rolou uma discussão básica?
NORGU: Exatamente. Fora de propósito né?
GARÇOM: É comum. Como garçom, nunca vi uma conversa, num tempo médio ou longo se manter só amigável. Nem preciso escutar. Às vezes a gente percebe pela linguagem corporal mesmo. Sempre tem momentos de embate, mesmo sendo uma confraternização. Não se sinta premiado, sempre acontece...
OATIX: E você que observa as mesas por todo esse tempo, tem alguma sugestão de alguma maneira de voltarmos para um modo mais tranquilo? Tipo como estávamos no início?
GARÇOM: Vou ser bem sincero. Vocês ultrapassaram uma barreira que eu não sei se tem volta. Mas tenho duas dicas básicas que podem melhorar muito a experiência de vocês. A primeira é pedir o prato do dia, que está maravilhoso. A segunda é mover a mesa.
GEMMA: Como assim mover a mesa?
GARÇOM: Às vezes pra gerar dinamismo e novas formas de comportamento, nada como mudar um pouco a disposição das coisas. Por que a gente não roda um pouco a mesa?
NORGU: Rodar?
GARÇOM: Todo quadrado é também um losango! Se girarmos um pouco essa mesa fica fácil perceber isso. Por favor, levantem-se um instante, pode ser? Ok... Pronto... Abracadabra! Agora vejam como o cenário está diferente! Vou propor um desafio a vocês. Troquem de lugar na mesa, olhem para a pessoa que está à sua frente e falem a primeira coisa que lhes vier à mente, topam?
NORGU: Ok, vamos lá.
GEMMA: Cara, obrigada. Você é diferenciado, vou te dar 5 estrelas aqui. Parabéns mesmo! Quem me dera que os garçons fossem todos assim.
GARÇOM: Que isso! Essa ideia nem é minha, vem de muito tempo. Joguei muito esse jogo quando pequeno. É um jogo mágico. Transformador.
ZIMAK: Estávamos mesmo precisando de uma pessoa de fora pra desviciar essa conversa.
GARÇOM: Aproveitem! Vou pedir 4 pratos do dia pra vocês! Vou solicitar também o aumento da iluminação nessa área do salão para que se enxerguem um pouco melhor. E até mais!
Na nova disposição da mesa em losango, Norgu sentou na antiga cadeira de Gemma, Gemma sentou na cadeira de Zimak, Zimak na cadeira de Oatix e Oatix na cadeira de Norgu.
. . .
PARTE 13
NORGU: (...)
ZIMAK: Oi?
GEMMA: Eu não entendi muito bem, sua voz tá um pouco travada pra mim.
NORGU: Mas vocês estavam balançando a cabeça... Eu to há meia hora falando sozinho, é isso?
OATIX: Deu pra pescar alguma coisa, mas tinha muito ruído, sua voz ficou cortada. É coisa da minha cabeça?
ZIMAK: Não, muita interferência aqui no salão.
NORGU: Vocês tão de sacanagem comigo né? Vocês estão fingindo?
ZIMAK: Não, eu também estou com uma dificuldade enorme em te ouvir Greg, mas achei que fosse um pouco do meu ódio que estava me deixando surda.
GEMMA: Sabe o que é mais estranho?
OATIX: Diga.
GEMMA: Estou com a impressão de que entendo a Manu, o modo de pensar dela, com uma clareza que me assusta.
ZIMAK: Sério? Eu estou sentindo isso em relação ao Sérgio.
OATIX: E eu em relação ao Gregório.
NORGU: Gente, o que está acontecendo? O garçom colocou droga na bebida de vocês?
OATIX: Você não sente nada, Greg?
NORGU: Sinto. Estou triplamente incomodado. Primeiro por vocês terem me acusado injustasmente, depois por terem se recusado a ouvir a minha réplica e agora essa reação bizarra integrativa e sensitiva como se tivessem passado por uma experiência de santo daime, de quebra do véu das aparências.
OATIX: Mas é exatamente isso.
ZIMAK: Greg, me escuta. Pela lógica você deve estar conectado com a Júlia. Depois que a gente rodou a mesa, você sentou na cadeira dela. Todos os outros seguiram esse padrão. Faça um esforço, só falta você pra confirmar essa teoria.
NORGU: Conectado com a Júlia? Como assim vocês estão conectados?
OATIX: Sim, olhe pra Júlia. Olhe com sinceridade e diga o que você vê.
NORGU: Gente, vocês estão me sugestionando. Eu vou acabar enxergando o que o grupo quer que eu enxergue. Que nem aquele experimento famoso onde as pessoas começam a responder o que a maioria está respondendo, por conformidade social, independente da lógica. Daqui a pouco vou começar a ver umas maluquices, porque vocês estão ficando bastante convincentes.
OATIX: Apenas não racionalize tanto. Eu sei que é difícil. É difícil pra mim também aceitar, mas está acontecendo, cara, não dá para negar. É como se eu pudesse enxergar com os seus olhos, é sério.
NORGU: Bom saber que eu tenho um doador de córnea altamente compatível.
OATIX: Greg, sem compromisso, fale algo sobre a Júlia, a primeira coisa que vem na sua cabeça.
. . .
PARTE 14
NORGU: Insegurança, medo, ansiedade.
GEMMA: (riso nervoso). Claro que não! Eu to super de boa agora! Você ficou ofendido com as nossas verdades e quer descontar em mim.
NORGU: Só respondi o que o Sérgio perguntou, ora! Se você não aguenta não tivesse vindo brincar...
OATIX: Calma, vamos fazer assim, cada um fala um pouquinho, pra gente entender melhor o que está acontecendo. Deixe o Greg falar primeiro, depois a gente roda no sentido horário da mesa.
ZIMAK: Se for mentira ou verdade, vamos ver até onde esse momento nos leva.
NORGU: Olha... Se não é a pessoa mais travada que eu conheço falando em se permitir viver. Viu como foi bom ter te enturmado?
ZIMAK: Greg, não me faça desistir. Eu quero acreditar que a gente pode viver uma experiência legal e humana. Por favor, tenha um mínimo de maturidade, por favor.
NORGU: Tá bom, tá bom, eu aceito. Depois não venham me dizer que eu sou individualista e que nunca me sacrifico pela equipe. Vou até adiar um pouco meu próximo compromisso. Só um minuto, vou mandar o zap aqui...
GEMMA: Vai lá então, olha através da "minha janela" e diz o que vê.
OATIX: Nada do que acontecer aqui vai ser gravado ou espalhado. Certo, Greg?
NORGU: Gente, isso é bem improvável, é como se eu estivesse realmente dentro da cabeça da Júlia. A impressão que tenho é que eu consigo entender muito bem como ela funciona.
OATIX: Greg, você ouviu o que eu falei? Você se compromete a não espalhar nada? Vamos dar um voto de confiança a você por mais que você não mereça. É como se tivéssemos assinado desta vez, ok?
NORGU: Claro, se essa maluquice for verdade eu também serei exposto, então se eu espalhasse algo sobre vocês vocês poderiam me chantagear com informações sensíveis sobre mim. Fiquem calmos, nada vai vazar.
OATIX: Que assim seja.
. . .
PARTE 15
NORGU: Júlia, as suas amizades... não têm sustância nenhuma. Você sabe disso mas nega. Quer acreditar que construiu bons relacionamentos mas nunca na vida se sentiu correspondida. Nunca se sentiu suficientemente amada, e está ficando cada vez mais tarde, isso te preocupa... Em você... a esperança de que o acúmulo de gente preencha a fome insaciável de afeto. Se entope de relações fáceis, rápidas, que supram o vício de glicose no sangue... Há tanta gente, tanta coisa, tanta abundância, tantos lugares pra onde ir e coisas pra conquistar. Cada dia é uma nova chance de viver um romance ou uma amizade um pouco mais verdadeira... Enquanto não dá, acumula, coleciona. Anda curiosa pelas ruas de países e pessoas desconhecidas. Depois de duas ou três voltas não aguenta mais, pega um trem para qualquer lugar e some. Enquanto ainda não tiver engolido o mundo inteiro sempre haverá a esperança de ter alguma parte restante, alguma ilha escondida que guarde o tesouro que você tanto procura. A vastidão do mundo garante a sua busca. No momento queria estar casada mas é solteira convicta. Queria passar mais tempo na natureza mas gasta a maior parte nas redes sociais. Ama filtros do "Glinchagram". São para você um elixir de otimismo e beleza. Te distraem da sua incapacidade de chorar. A única vez que chorou foi aplicando um filtro que transforma suas lágrimas em flores. Lembrei agora de uma reunião... O quanto me incomodou na época aquela sua reação sem nexo, quando você riu, depois da notícia do falecimento de um parente meu. Agora posso entender o que houve... Foi pane no seu sistema... Não sabia do esforço que você fazia pra levantar da cama... Eu te respeito mais por isso sabia? Espero que isso tudo passe.
GEMMA: Ufa!
ZIMAK: Que radiografia foi essa ?!
GEMMA: Pois é. Tem coisas certas aí, mas achei a maioria das coisas bem exageradas e tendenciosas. Ele misturou muita coisa da cabeça dele no meio, criou em cima. Mas quem é o próximo agora? Eu né? Seguindo a ordem... Vamos lá, pra cá, pronto. (risos)
ZIMAK: Isso
GEMMA: Vamos lá, Manu.
ZIMAK:Tenha misericórdia da sua amiga...
GEMMA: (risos) Tá bom. A gente nem sabe se isso é real, é só uma brincadeira.
. . .
PARTE 16
GEMMA: Você é casada?
ZIMAK: (olhos arregalados) Sou. Por quê?
GEMMA: Legal, não sabia, você nunca falou nada! Nem postou nada do seu marido. Ele ama as suas tiradas irônicas né? Te acha engraçada. Não te ama tanto, ama mais as suas ironias, você sabe disso... Mas pra você é indiferente, é irônico. Olha... que interessante... você não é distraída! Várias vezes me senti ignorada por você mas você estava era super atenta, com a visão periférica ligada, com a intuição aguçada. Às vezes você parece estar só mexendo nas suas coisas, mas na verdade está com a câmera ligada, filmando o ambiente e vendo em detalhes o que acontece. Muito perceptiva, entende demais as coisas... Observadora... Aprende mais observando do que lendo. Desenvolveu essa defesa porque não consegue confiar em ninguém, em absolutamente ninguém, nem em si mesma. Você gostaria que a vida, as pessoas, as coisas, tudo fosse um pouco mais plano. Sem tantos altos e baixos. Isso tornaria as coisas tão mais fáceis... Odeia a instabilidade do mundo... Planificou-se por dentro com uma ordem admirável, com um empenho pesado de arquivista. Tudo guardado em gavetas emocionais, em caixas mentais. Tudo em seu devido lugar. E seus valores são extremamente definidos e mensuráveis. Você segue à risca, com uma disciplina militar. Seus mandamentos diários, que você chama de três "erres" são: "racionalidade, responsabilidade e respeito". Você é menos plana do que gostaria. Tem ranhuras, detalhes, marcas. Sua questão de vida mais primordial é o duplo que há em você. Você tem uma dupla personalidade e sente vergonha disso. Não quero te expor demais... mas no trabalho você é rígida e metódica. Em casa você é elástica e criativa. Além do artesanato, faz contorcionismo, yoga e bateria. Sente medo de "escolher a roupa errada" e acabar sendo rígida onde deve ser maleável e maleável onde deve ser rígida. E aí? Bateu alguma coisa?
ZIMAK: Olha, eu vou fazer o seguinte: só vou escutar tá? É melhor.
NORGU: (risos) Boa, Manu!
ZIMAK: Tem um pouco a ver sim. Mas é uma caricatura... Acho que fantasiou um pouco em cima dos seus esteriótipos sobre mim...
GEMMA: É possível...
ZIMAK: Próxima vítima... Sérgio!
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PARTE 17
ZIMAK: Pra você o trabalho é fundamental, tem uma importância cabal na sua vida. Ironicamente, você tem um mindset que martela o tempo inteiro: "Trabalho é sofrimento, é luta, é sacrifício, é subserviência do eu em relação às necessidades do mundo, é campo minado, um passo em falso pode ser fatal". Isso me faz concluir que você é um tanto masoquista, não? Se esforça pra manter uma aparência de bom profissional. Vive sob tensão de que seja descoberto na insuficiência que julga ter, para os postos que ocupa. É esquivo no confronto. Arruma jeitos de não dar a opinião para não se comprometer e não manchar a própria imagem na empresa. Você é calculista com o que fala. Tenta ser neutro e agradável. Fica ansioso quando no centro das atenções e usa as histórias do seu Husky como subterfúgio. Escolheu um cachorro que chama a atenção, porque é mais fácil desviar o foco de você. Por isso você gosta tanto de enturmar as pessoas, para que falem e você não precise falar. Quanto mais falar, mais arrisca pôr tudo a perder. "Antes ele do que eu". "Eu não posso perder esse emprego, eu não posso falar o que eu acho". Você é do tipo passivo-agressivo quando se sente ameaçado. Como você é tranquilo e não exige nada dos outros em situações normais, acha que as pessoas têm o dever de te atenderem prontamente, sempre, na mesma hora que você pede e do jeito que você quer. Porque se você está pedindo, é porque precisa daquilo incontestavelmente, acha que as pessoas não têm o direito de escolher não fazer. É muito ofensivo para você. Quando negam você fica possesso e o que você tem de pior vem à tona: em pensamento, acusa as pessoas por tudo o que dá errado em sua vida. Culpa-as o tempo todo e é incapaz de perdoar. Acha que a vida não muda, que as pessoas não mudam. Suas queixas mais comuns são que os outros são negligentes, desinformados , desleixados e ambiciosos. Você jamais fala isso, mas pensa isso o tempo todo e fica se torturando com isso. Acha injusto que em várias situações de sua vida as pessoas se queixem que você é negligente apesar de gastar tempo estudando os detalhes pra não errar. Que é desinformado apesar de ler bastante toda manhã. Que é desleixado, apesar de se arrumar. Que é ambicioso quando você tenta ser conformista. Você se acha injustiçado e quanto mais tenta resolver os seus demônios, mas as pessoas te acusam deles. E aí? Algo a ver?
OATIX: Olha, Manu, interessante. Eu até vou pensar com carinho nesse seu feedback, mas tem muita coisa equivocada. Vamos fechar a rodada então? Vamos lá, vamos falar do Greg...
. . .
PARTE 18
GARÇOM: Com sua permissão, senhores... chegou o jantar. ( tira a tampa da bandeja fumegante) Arroz Negro com amêndoas laminadas e filé de salmão!
GEMMA: Uau!
NORGU: Ótimo, chegou bem na hora da janta.
ZIMAK: Tá com medo, Greg?
NORGU: De quê? Da sobremesa? Acho que vocês nem vão ter apetite pro arremate depois de tanto que se fartaram de mim.
ZIMAK: Temos sim, nessas ocasiões especiais sempre tem um espaço a mais no estômago.
NORGU: Cuidado com a indigestão.
GARÇOM: Precisam de mais alguma coisa, mais alguma bebida?
GEMMA: Por mim não...
NORGU: Um vinho cairia bem agora.
GARÇOM: Perfeito, vou trazer um bom vinho para harmonizar.
GEMMA: Hum.. tempero excelente! Muito gostosa a comida!
ZIMAK: Com certeza, exótico na medida certa.
OATIX: Querem comer primeiro antes do meu relato?
NORGU: Não, vai lá, continua po.
OATIX: Lá vamos nós, Gregório... O que eu vejo em você...
NORGU: Mete bala, todo mundo falou, pode falar o que vem à cabeça, não vou levar pro pessoal não.
OATIX: Profundamente arrogante.
NORGU: (risos) Assim eu vou engasgar com a comida! Ótimo início!
. . .
PARTE 19
OATIX: Você tem consciência de ser arrogante e inclusive tem orgulho de ser arrogante... Ataca pra não ser atacado... Acha que se não for arrogante num nível bem alto e logo, não vai conquistar seu espaço, perderá a guerra... Seu maior medo é estar num lugar de tanta subserviência que não possa mais ser arrogante. E se disfarça de discursos em que não acredita. Era exatamente o que eu pensava...
NORGU: No caso, ainda é o que você pensa, mas vai lá, conclui sua fantasia...
OATIX: Você não se acha, você tem certeza de que é melhor que os outros. Sabe que seu temperamento reativo vai te manter nessa posição de respeito, porque as pessoas têm certo medo de te contestar. Você alimenta esse medo nos outros pra se proteger, com reações imprevisíveis e humilhantes. Lembro de quando eu estava entrando na empresa, na primeira semana. Você me cortou e resolveu em segundos uma questão que eu vinha tentando resolver há horas. Depois fez questão de dizer em público que eu era lento e desatualizado. Todos que assistiram à cena riram de mim, e você foi chamado todas as vezes seguintes para todos os serviços daquele cliente. Eu ficava encostado, não porque não soubesse, já tinha aprendido como fazer, era um detalhe, mas sua performance foi tão degradante pra mim que eu tive que ficar anos insistindo em me vender melhor para conseguir aumentar meu posto na carreira. Quando você me via, me dava um tapa nos ombros como que me vendo como um cão maltrapilho.
NORGU: Peraí! Gente, o jogo é pra falar sobre mim ou sobre você? Você só fala de você! Vamos melhorar o foco aí.
OATIX: Eu vou falar de você, deixa eu concluir. Eu te achava cruel, frio, de coração duro. Por todos esses anos achei isso. Mas não é o que eu vejo nesse exato momento. Você é tão light, é de uma fragilidade que chega a me dar pena, e desperta meu instinto de proteção. Por dentro você é de manteiga, você é delicado. O único modo possível que você consegue se relacionar é através da arrogância senão você não seria ninguém. Você sabe o mal que isso faz, se esforça pra se desconstruir, mas não consegue. Quer ser uma pessoa melhor, mas não consegue. É, meu caro.. pelo menos é bom saber que você está tentando... Quem sabe um dia, não é mesmo? Quem sabe um dia não nos brinde com alguma melhora?
Norgu pára de mastigar a comida e seca algumas lágrimas com o guardanapo.
NORGU: Eu queria acrescentar uma coisa. Vocês lembram do ataque hacker que a empresa sofreu, que boicotou o desenvolvimento do jogo, e encheu as telas de xingamentos e "verdades entaladas na garganta" sobre os funcionários?
OATIX: Como não lembrar?
NORGU: 10:38 do dia 11 de setembro. Meus olhos pesados olhavam pra tela. Estresse, coisas insolúveis, angústia. Tive raiva de mim por ser quem sou. Tive raiva da empresa por exigir de mim além do que eu posso entregar. Tive raiva de vocês por me odiarem. Eu precisava extravasar tudo isso de alguma forma. Vazei nossos brainstorms para a concorrência. Eu queria sabotar, queria mesmo, queria fazer mal para tirar o mal de mim. Queria maldizer a todos até que tudo voltasse a ser suportável. Sorteei um nome num gerador de caracteres e assumi uma segunda personalidade para fazer a catarse. Os jogos de tiros e lutas não me eram mais suficientes. Eu precisava de mais, de um impacto destrutivo de verdade. Eu queria causar um rombo naquela empresa! Foi aí que criei o primeiro bug no game. Quando o personagem do jogo, o "cartas marcadas", não tinha mais nenhuma opção a não ser se mostrar de fato. Isso destruiria o enredo, porque a graça do jogo era justamente o "não se revelar", se esconder, se mostrar só no momento certo. Eu criei o bug da revelação infinita. E seria impossível jogar dessa forma, totalmente transparente, totalmente aberto.
OATIX: Não sei se entendi, você trabalhou para o NORGU?
ZIMAK: Isso é grave Greg, custaria seu emprego, pense bem no que vai dizer...
GEMMA: Isso seria imperdoável. Pode dar até cadeia!
NORGU: Eu sou o NORGU.
OATIX: Não é possível. Eu não enxergo isso em você. Você está blefando.
NORGU: Está nas suas mãos acreditar ou não. Tem certas coisas que estão tão ocultas na gente que é como se não fossem mais partes de nós. A gente desconecta pra não se machucar no contato direto. O NORGU foi assim. Eu fui NORGU por pouco tempo, depois limpei as provas, desconectei, e não me sinto NORGU por completo. Foi um momento de descontrole, revolta, fraqueza.... O NORGU não era um gênio como vocês acham, eu tinha todo o acesso nas mãos, eu vazei, abri o firewall. Não deu tanto trabalho, não teve mérito. Eu sabia que ninguém desconfiaria de mim.
ZIMAK: Sinceramente eu só consigo acreditar se você provar isso
NORGU: Abre o seu celular, Manu. Estou te mandando agora o vídeo.
Zimak recebe um vídeo com Gregório criando o nick de Norgu e começando o ataque hacker exatamente às 10:38, horário que ficou inesquecível na empresa, no dia do primeiro boicote inesperado.
ZIMAK: É inaceitável. Depois disso eu me recuso a ficar na mesma mesa que você. Você sabe quantas horas de trabalho eu gastei tentando resolver o bug do jogo? E todo o pânico de não saber quem era o impostor, se era da empresa ou não. A desconfiança generalizada. Foi uma das piores fases da minha vida.
GEMMA: E como você é falso... Ajudando o chefe a descobrir quem teria sido o hacker, era atuação aquilo é? Com seus discursos motivacionais de cooperação, união e ética. Você é muito falso...
OATIX: Realmente, eu esperava tudo de você, menos isso. Vou pedir a conta. Pra mim já deu.
. . .
PARTE 20
GARÇOM: Tchazan! Chegou o vinho!
NORGU: Que timimg , mestre... Bem na hora de afogar as mágoas ( olhos marejados)
GARÇOM: As coisas sempre aparecem na hora certa.
NORGU: (sorriso sem graça, balançando a cabeça em negativa) De fato.
GARÇOM: E a janta, gostaram?
NORGU: Excelente. Uma das melhores que comi.
Norgu (Gregório) estava com o prato limpo. Nos 3 pratos restantes sobrava um pouco de arroz negro. Uma barata aparece na mesa e começa a circundar os 3 pratos.
GEMMA: Putz, que nojo! Eu que elogiei este lugar, como vocês permitem isso? Garçom, tira esse prato daqui agora!
OATIX: Chama o gerente, eu quero falar com o gerente!
ZIMAK: Que absurdo, gente...
O garçom faz um gesto de "calma" com as palmas das mãos projetadas levemente para frente. Estala os dedos e a barata pára.
GARÇOM: É de plástico gente, é uma brincadeira para descontrair.
GEMMA: Eu não to achando graça nenhuma. Acho que tudo tem um limite e você já está passando dele. Qual o seu problema? Você tem algum problema?
GARÇOM: Não, me sinto bem , por quê?
ZIMAK: Você está sendo irônico?
GARÇOM: Não, deveria ser?
GEMMA: Você pode parar com isso por favor?
OATIX: Chega, amigo, não é isso que a gente espera de um garçom.
ZIMAK: É melhor você só servir e ficar relativamente quieto.
GARÇOM: Se vocês entendessem o que está acontecendo veriam que vocês é que estão me servindo e não o contrário.
ZIMAK: Olha, já percebemos que você é louco e quer aparecer com suas plumas desde que chegamos. Chega, tá? Vamos acabar logo com isso. Chama o gerente pra gente. Eu quero um abatimento na conta. Não vou pagar integral depois disso.
GARÇOM: Entendo, vou comunicar ao gerente.
O garçom puxa as mangas que estavam escondidas no colete, formando um traje semelhante a um paletó. Cobre com um guardanapo de pano a barata e a faz virar uma cartola de mágico. Põe na cabeça. Mexe a caneta de anotar os pedidos e ela vira uma varinha. Ele assopra a varinha e ela começa a crescer. Vira uma espécie de bengala, onde ele se apóia no chão, em postura cômica e desafiadora, pendendo desproporcionalmente para um dos lados do corpo. Com a voz empostada ele continua:
GARÇOM: Boa noite, sou o gerente. Como posso ajudá-los?
GEMMA: Ah cara, pára com isso! Você é um palhaço.
ZIMAK: Você sabe o que houve, pode chamar o gerente, por favor? To pedindo educadamente por enquanto.
GARÇOM: (voltando à voz normal) Claro. Vamos fazer o seguinte.
Tira um baralho do bolso e começa a fazer movimentos de cascatas sanfonadas de cartas de uma mão para outra.
GARÇOM: Você escolhe uma carta, qualquer carta. Se tirar qualquer uma que não seja rainha de copas eu saio daqui , peço demissão e chamo o gerente tradicional que você quer tanto ver.
ZIMAK: O que realmente está acontecendo aqui?
GARÇOM: Vamos, tire a carta. Suas chances são altas!
Zimak abre bem o baralho, pega uma carta. Desiste, retorna ao deck e escolhe outra numa direção oposta.
ZIMAK: Não esperava por essa né, esperto?
GARÇOM: É apenas o seu livre-arbítrio, eu jamais forçaria uma carta (piscadela)
GEMMA: Tirou qual, amiga? Não me diga que foi a Rainha de copas?
ZIMAK: Rainha de Copas...
Zimak encara o garçom com raiva. O garçom pega a carta escolhida, põe de volta ao baralho e magicamente todas as cartas do deck passam a ser dama de copas.
GARÇOM: A rainha de copas pede que você abra o coração.
Zimak se levanta e chuta a cadeira.
ZIMAK: Eu vou achar esse gerente, eu vou dar um jeito de você perder esse emprego, pode ter certeza.
OATIX: Calma, sem briga, vamos resolver isso de uma maneira melhor.
GEMMA: Gente... eu nunca vi essa garota assim... A Manu que eu conheço nunca faria isso...
O garçom abraça Zimak, que se debate, batendo em seus ombros.
GARÇOM: Eu não quero seu mal. Apenas diga o seu nome.
ZIMAK: Manuela de Nóbrega Martins. Quer o CPF também? Ridículo... Me solta!
GEMMA: Solta ela!
OATIX: Solta, ou eu chamo a polícia! Isso está saindo do controle.
O garçom solta Zimak.
GARÇOM: Amigos, vocês no fundo sabem, mas estão em negação. Por mais que eu fale vocês não vão acreditar... Mas eu não sou garçom, sou mágico, não é difícil perceber isso. Não estou aqui pra entregar o que querem, mas para surpreender.
ZIMAK: Você está aqui para servir sim! Não para fazer suas palhaçadas, dar showzinho e muito menos lição de moral! E ainda vindo de baixo... de um servo... de alguém que está aqui pra servir! Pra me servir!
GARÇOM: Ora se o poder da rainha não lhe subiu à cabeça... Eu não estou aqui pra servir vocês. Minha missão é um pouco mais nobre. Estou aqui para gerar a mudança, para ser o exemplo. Mostrar que as máscaras caem cedo ou tarde. Mas você quer a conta, não é isso que você quer?
ZIMAK: É exatamente isso que eu quero. E nunca mais ver a sua cara. Nunca mais voltar nesse restaurante de merda!
GARÇOM: Ok, mas por gentileza não me negative nas redes sociais. A comida estava tão boa... Vamos ser justos, hum? Vocês estavam gostando tanto... É uma pena, vou buscar a conta pacificamente... Observem!
O garçom se retira dando piruetas pra trás.
. . .
PARTE 21
GEMMA: Que sorte do pessoal que não veio hein... Eu não imaginava que o presencial podia ser tão ruim assim. Da próxima vez nem saio de casa.
OATIX: Foi lamentável... Eu acho que só vim como uma questão política mesmo, achei que o chefe viria, que todos viriam...
ZIMAK: Gente... (cabisbaixa)
NORGU: Oi?
ZIMAK: Eu vou falar, eu sou a Zimak.
NORGU: Você tá brincando?! Parceira de traição? Impostora?
ZIMAK: Exatamente...
OATIX: Zimak, o outro hacker? O que criou o bug dos travamentos?
ZIMAK: Exatamente (constrangida)
OATIX: Francamente... Eu não confio mais em ninguém dessa empresa. O que passa pela cabeça de vocês?
ZIMAK: Eu tenho minhas divergências com o Greg, mas não é justo que ele se afunde sozinho nessa.
OATIX: Você vai falar pro chefe? Não precisa.. Já passou tanto tempo... Por mim, eu posso esquecer e não falar para ninguém, tá? Podemos seguir adiante, agora a realidade é outra.
NORGU: Bem, Manu, digo, Zimak, se a coisa apertar pra você , você pode trabalhar comigo.
ZIMAK: Em quê, em voos pra lugar nenhum?
NORGU: (risos) Sim! Eu garanto que chegaremos a algum lugar. Nem tudo o que eu falo é tóxico.
ZIMAK: Boa parte é só egotrip.
NORGU: Mas quem não faz egotrip? Essa noite tivemos um show de egotrips.
O garçom entrega uma comanda fechada de couro para cada um, ao invés de uma única como de costume, que centraliza o pagamento em apenas uma pessoa. Cada um abre a sua e há apenas uma pétala de flor.
OATIX: O que é isso? Quanto deu, maluco?
GARÇOM: Já deu... Ninguém aguenta mais pagar essa conta...
O garçom põe a cartola no centro da mesa. Tira do canteiro decorativo um pouco de terra com as mãos e enche a cartola. Move as mãos rapidamente e aparece um palito verde em suas palmas. Ele pede as 4 pétalas de cada um e monta no entorno do palito uma flor. Depois planta no jarro de cartola. A flor começa a crescer.
GEMMA: (Olhando para o jarro em prantos) Eu... Eu.... Eu sou a Gemma (soluçando)
NORGU: Vem cá, chora, você tem o direito de chorar. Chora tudo o que você não chorou.
Norgu e Zimak a abraçam.
OATIX: Eu não consigo mais ficar perto de vocês. É muita podridão, vou embora.
O garçom faz um gesto de surpresa, levantando as mãos abertas com as palmas para baixo na altura do pescoço e franzindo os ombros. Torce os punhos na altura dos olhos fingindo choro. Com a bengala em mãos , vira as costas e faz uma dança em direção à saída do restaurante, batendo a bengala no chão.
OATIX: Quanto deu, seu louco?! Quanto deu???
O garçom tira as luvas, molha a polpa dos dedos com a língua, conta cartas de baralho em branco e as joga pro ar. Finge querer voltar pro restaurante e numa mímica, como se tivesse algo que o puxasse pra fora, ele se projeta pra rua com falso esforço, fingindo ter saído a contragosto. Bate com os punhos numa porta invisível criada por mímica, abre esta porta imaginária e diz apenas com movimento labiais, sem emitir som algum: "Não dá mais".
A um passo de sair do restaurante, Oatix suspira em silêncio, morde os lábios , aperta os punhos, solta um grito forte de raiva que lhe queima o pescoço. Dá meia volta e sai correndo para abraçar os 3 amigos.
OATIX: Eu estou com vocês, eu sou o Oatix! O sabotador das skins, o criador das discórdias, o ressentido, o colecionador de mágoas, a raposa na pele de cordeiro! Eu sou sujo, eu sou imundo! Eu sou corrompido! Eu sou uma merda de um sistema corrompido!
Os 4 observam o crescimento da vegetação, que se forma no restaurante a partir da expansão da pequena planta na cartola.
. . .
PARTE 22
O garçom atravessa para o outro lado da rua e entra numa cafeteria. Numa das últimas mesas, está o chefe da "Disguise Games" jogando em seu tablet.
Uma carta de 4 de ouros é arremessada na tela do tablet. Ele move a cabeça para cima em direção ao garçom e fica surpreso:
CHEFE: Já acabou?
GARÇOM: Sim, foram os quatro mesmo...
CHEFE: Sabia... Os mesmos que teriam coragem pra sabotar uma empresa teriam coragem de encarar uma reunião presencial... que justamente vai contra toda a cultura da empresa.
GARÇOM: Eles foram bastante resistentes, mas acabaram cedendo no final.
CHEFE: Você é bom nisso. Um algoritmo humano. Tudo o que eu precisava. No virtual eles dariam um jeito de escapar. No real , longe zona de conforto, não tinha escapatória.
GARÇOM: Exatamente. Dei verdadeiras injeções de dopamina, propiciei as circunstâncias corretas e as vulnerabilidades psicológicas vieram à tona. O truque da mesa é infalível. Ele permite ver o outro como realmente é por um breve período. O impacto disso é muito forte.
CHEFE: Mas você os fez sofrer muito?
GARÇOM: Só o necessário. "Nada grandioso entra na vida dos mortais sem uma maldição"
CHEFE: Sófocles?
GARÇOM: Sim, está escrito a giz ali na decoração da parede...
CHEFE: Sabe o que me deixa mais confuso nisso tudo? Eles quase destruíram a minha empresa, mas são geniais... Criaram um jogo genial. Passei a madrugada inteira jogando e está instigante, viciante, perfeito. Uma parte de mim quer acabar com a vida deles, a outra quer ligar e agradecer.
GARÇOM: Mas você cogita em mantê-los na Disguise depois disso tudo?
CHEFE: Talvez seja necessário um gesto de misericórdia.
GARÇOM: Sério? Você confiaria neles?
CHEFE: Eu também errei muito. Não sou tão confiável assim. Não tenho tanta moral pra ser o paladino da justiça.
GARÇOM: Você também invadiu a própria empresa?
CHEFE: Não, seria absurdo demais. Mas dei combustível pra tudo isso. Criei situações de estresse desnecessário, fiz eles trabalharem por dias sem descanso e sem hora-extra. Acreditei que gerar crises constantes no ambiente de trabalho fosse o segredo pra deixá-los sempre motivados. Quis espremê-los até o limite para que do sumo saísse o melhor suco, o melhor das suas mentes... Eu os tratei como ratos de laboratório. Experimentei sobrecarregá-los de dor para estimular resultado. Passei da conta, errei na dosagem, machuquei demais...
Uma garçonete traz um café e dispara uma dose generosa de chantilly. O "chefe" afunda o creme com uma colher, fazendo transbordar para o pires.
CHEFE: A "Disguise"... era uma prisão com aparência de liberdade. Estiquei demais o fio, alguma hora ia dar curto-circuito, não tinha jeito.
GARÇOM: E o que você vai fazer? Simplesmente receber a galera depois das férias como se nada tivesse acontecido?
CHEFE: Ouve só uma coisa... Ontem descobri que minha filha tinha deixado um picolé embaixo da almofada do sofá há 2 semanas. Àquela altura já tinha manchado o tecido e a mancha é irremovível. Não quero que a Disguise chegue a esse ponto, acho que ainda dá pra usar uma solução corretiva. Tanto a mancha do meu sofá quanto a da empresa têm a mesma razão: o meu desprezo inconsciente pela existência do outro. Há tempos não olhava as pessoas nos olhos, nem mesmo a minha filha.
GARÇOM: Você ignorava as opiniões dos funcionários?
CHEFE: Eu os via como recursos, como programas, como vídeos que eu podia pausar e fechar quando quisesse, não como pessoas. Ouvia uma opinião ou outra, mas em pensamento, sempre tive a certeza de que era a minha que estaria certa independente de qualquer coisa que fosse discutida. Que por ser chefe, eu estava num patamar bem acima, muito acima. Minhas emoções desautorizavam a existência de cada um dos funcionários, de maneira doente e automática. E eu me sentia bem com isso, muito bem. Sentia poder. Sentia prazer.
GARÇOM: Hum... Você acha então que eles perceberam esta violência oculta e te deram o troco?
CHEFE: Exatamente. E agora minha obrigação como líder é tentar consertar a empresa. Dar um jeito de ter lucros sem perder a saúde.
GARÇOM: Talvez você estivesse querendo gerar resultados grandiosos e atrativos, à custa de um sacrifício exagerado. Como nos truques antigos , em que mágicos eram trancados e algemados em tanques de água e precisavam achar um jeito de sair, pouco antes da própria morte. Hoje em dia se consegue resultados tão interessantes quanto usando apenas a inteligência. A simplicidade quando bem usada gera muito valor com poucos recursos...
CHEFE: Com certeza. Mas você se sente confortável nessa posição? De ser um impostor por profissão?
GARÇOM: Eu penso que meus truques atendam a um propósito nobre. Jamais eu levitaria em praça pública só pra me mostrar. Tenho a função de libertar as pessoas de dores ocultas.
CHEFE: E como saber se realmente você está fazendo o bem? Como você pode ter certeza?
GARÇOM: Se no final dos meus espetáculos a platéia se permitir esquecer nos assentos as máscaras mais inúteis. Se entregarem de bandeja, pra quem quer que seja, algum gesto de humanidade.
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