top of page
  • Foto do escritorwytways

T1 EP5 (WYT)

Atualizado: 24 de jul. de 2023

🔌 Este texto surgiu da conexão de ways. Leia aqui!


O TIGRE DE BENGALA


PARTE 1


No hospital, as trombetas de beeps já anunciam a contagem regressiva da morte.


Nicholas arrisca mexer seus dedos mais bem dispostos: o polegar e o indicador esquerdo.


Fazendo um movimento de pinça, consegue resgatar o controle-remoto, que tinha caído no vão da cama.


Na ausência de um anestésico químico mais forte, resta a televisão.


Tateia o plástico gasto até encontrar o botão de power.


PARTE 2


A TV acende num canal de saúde e bem-estar.

Lá está uma professora de ginástica dançando, enquanto fala com o público:


Gente, olha que lindo o sol entrando pela janela aqui no estúdio!


Hoje não tem desculpa para não se exercitar, hein?


Ânimo, pessoal!


Alonga o braço atéeee aqui.


Inspira.


Agora expira.


Ahhh que delícia (...)


NICHOLAS: Isso é tão surreal... Em que mundo essa mulher vive?


Nicholas troca para um canal de ciência.


Você sabe o que é emulsificante? É uma substância que ajuda na mistura de ingredientes que não se dão muito bem! Tipo água e óleo (...)


NICHOLAS: Que aleatório... E eu com isso?


PARTE 3


ENFERMEIRA: Bom dia, seu Nicholas! Vamos tomar banho?

NICHOLAS: Eu tenho escolha?

ENFERMEIRA: Prometo que vai ser rapidinho.

NICHOLAS: De tantas coisas rapidinhas e insuportáveis, não sobra mais tempo para nada que seja razoável aqui nesse lugar.

ENFERMEIRA: Você conhece a Dona Ângela? Ela estava numa situação bem pior que a sua... Agora se reabilitou e tem praticado triátlon, acredita? Você vai ficar bom num piscar de olhos, vai ver só.


Nicholas pisca os olhos ironizando.


NICHOLAS: Filha... ( a enfermeira faz expressões de incômodo, contraindo a testa) Posso tomar um chazinho antes?

ENFERMEIRA: Mas nem tem chá aqui no quarto, senhor...

NICHOLAS: Já vai chegar, eu pedi.

ENFERMEIRA: Então... até chegar... é o tempo do banho.

NICHOLAS: Eu passei por tanta coisa... Você não faz ideia... Não faz sentido passar os últimos momentos da minha vida aqui.

ENFERMEIRA: É só uma fase. Daqui há pouco o médico vai vir te falar do seu progresso e você vai ver que não estou mentindo. Depois da alta ninguém te segura.

NICHOLAS: Porra, você vive num mundo paralelo? Olha para mim! Que saída eu tenho?

ENFERMEIRO: Olha a boca, seu Nicholas! Que feio!

NICHOLAS: Hum. Alguma chance de você parar de me tratar como se eu tivesse cinco anos de idade?


PARTE 4


Os enfermeiros acabam a higienização.

A governanta entra no quarto.


GOVERNANTA: Senhor Nicholas?

NICHOLAS: Sim.

GOVERNANTA: Só confirmando seus dados...

NICHOLAS: Se eu ganhasse 1 dólar a cada vez que me perguntassem isso ... ( suspiro de tédio) Quarenta e quatro anos. Sangue "O negativo". Viúvo. Minha família é toda falecida. Não tenho filhos. Nenhum sinal de um acompanhante. Sem perspectiva nenhuma de sair daqui. Talvez eu nem saia.

GOVERNANTA: (expressão de susto e pena) Perdão. Eu posso te ajudar de alguma forma?

NICHOLAS: Chá. Você acha a moça do chá para mim?

GOVERNANTA: Vou tentar...

NICHOLAS: Estou precisando de algo um pouco refrescante, com aroma, sabe?

GOVERNANTA: Certo. Melhor perguntar para o seu médico antes. Sua dieta está bem restrita.

NICHOLAS: Eu só queria um chá.

GOVERNANTA: Se precisar de qualquer coisa liga no ramal. Quer que eu bote o telefone na cama para facilitar?

NICHOLAS: Não, filha. Eu já estou parecendo um poste, cercado de fios por todos os lados

GOVERNANTA: Como queira. Bom descanso.

NICHOLAS: Não descansa. Aproveita que você tem saúde e vive bastante!

GOVERNANTA: Com licença, senhor. ( Voz cansada e automática. A governanta revira os olhos quando percebe que não está mais no campo de visão de Nick).



PARTE 5


Nicholas assiste a um canal de jornalismo enquanto almoça:


APRESENTADOR:


Nosso correspondente internacional tem informações direto da República de Birrah.


CORRESPONDENTE:


Obrigado, Michel.


Com a vitória dos separatistas do sul, o país agora passa a se dividir em Birrah do Norte e Birrah do Sul.


O exército sulista visitará os hospitais prestando apoio e condolências aos feridos e seus familiares


Nicholas troca para um canal de desenho animado.

Está passando o filme: DENTE DE LEITE.


🎥 Cena do filme:


(...) um pássaro gigante bica um pedaço do arco íris e estanca o sangramento do dente do coelho (....)


NICHOLAS: Eu estou tão destruído que qualquer mensagem de cura me soa irônica. Talvez seja melhor tentar dormir.


PARTE 6


O médico entra no quarto.


DOUTOR: Bom dia. O senhor se incomodaria de desligar um pouco a TV?


Nicholas acorda de um breve cochilo.


NICHOLAS: Eu achei que já tinha desligado.

DOUTOR: Obrigado, senhor. Como você está?

NICHOLAS: Eu já nem sei mais. Acho que você pode me falar melhor sobre isso.

DOUTOR: Como nós já conversamos, todo o lado direito do seu corpo está afetado por ferimentos graves. Nós extraímos 26 balas, além de vidros, estilhaços e farpas. Tivemos que fazer várias intervenções para recuperar a função dos seus órgãos. No momento você está clinicamente estável e as infecções estão contidas.

NICHOLAS: Isso é bom?

DOUTOR: Sim. Agora é paciência... Vamos esperar o lado ferido do seu corpo se regenerar.

NICHOLAS: Sinceramente, quando me olho no espelho acho isso impossível. Estou decrépito.

DOUTOR: É normal. As feridas de guerra costumam impressionar. Mas tem cura sim. Procure se animar. O senhor tem um ótimo condicionamento físico e isso vai te ajudar demais na recuperação.

NICHOLAS: Você acha mesmo que eu posso voltar para casa?

DOUTOR: Acho não, tenho certeza.

NICHOLAS: Curiosa esta sua certeza.

DOUTOR: O que me preocupa é o seu psicológico. Tivemos informações de que sua personalidade está muito diferente. Você realmente não quer conversar com a psicóloga?

NICHOLAS: Que informações?

DOUTOR: Hoje tivemos a visita de alguém afeito ao senhor, que preferiu não subir, mas que o descreveu de maneira oposta a como você está se comportando no hospital.

NICHOLAS: E vocês acreditaram num sujeito qualquer?

DOUTOR: É um homem importante.

NICHOLAS: Estou sendo julgado por como eu deveria me portar num hospital, é isso?

DOUTOR: Foi algo imprevisto, senhor. Tem a ver com os rumos do nosso país.

NICHOLAS: Hum. Gente do exército?

DOUTOR: Sim.

NICHOLAS: Eles estão coagindo vocês?

DOUTOR: De forma alguma. As visitas dos militares têm gerado uma relevante aceleração na recuperação dos doentes. Muitos estão ganhando reconhecimento e melhorando a autoestima. Quem sabe não te ajude também? Você vai sair daqui sim.

NICHOLAS: Eu tenho lá as minhas dúvidas... Mas por que os oficiais não subiram?

DOUTOR: Não sei dizer. Os de alta patente são reservados. Mas ele garantiu que seria melhor assim. Te deixou esta carta aqui.


Nicholas lê a carta imediatamente;


"Estimado capitão-formiga,


Temos que comemorar nossa vitória, filho. Estamos do mesmo lado e do lado vitorioso! Você quer coisa melhor do que isso?


Fomos abençoados!


Mas uma coisa me surpreendeu: fiquei sabendo que você está em atitude hostil e amarga.


Isso é desafiador, Nick...


Estou rindo tanto por dentro...


Irônico ser eu que te fale a sua frase de efeito agora, não?


Mas tudo vai dar certo, filhote.


Acredite no Deus e nos dogmas de Birrah do Sul.


Que assim seja."


Nicholas contrai as sobrancelhas e focaliza em algo aparentemente terrível e muito importante no meio de suas lembranças.


DOUTOR: Senhor Nicholas? Está tudo bem?

NICHOLAS: Diga a ele que suba se tiver colhão!

DOUTOR: Senhor, não vamos interpelar!

NICHOLAS: E quando subir, diga que soltarei quantos tigres forem preciso!


Com os olhos arregalados, Nicholas risca a mesa retrátil de refeições com uma faca de plástico que restou do almoço.


O médico sai do quarto apressado e pede urgência no posto de enfermagem:


"Aumentem os sedativos e chamem a psicóloga!"


PARTE 7


Aos poucos, Nicholas abre os olhos e se incomoda com a luz forte da sala.


Vê em primeiro plano a silhueta de uma moça de cerca de 30 anos e vários enfermeiros ao seu redor.


Levanta as mãos na intenção de coçar as pálpebras e limpar os olhos lacrimejantes.


Logo percebe que ambas as mãos estão com ataduras, obrigando seus punhos a ficarem fechados.


NICHOLAS: Eu perdi meus 10 dedos?

PSICÓLOGA: Não (risos). Nós só te imobilizamos para evitar que você arranque os fios por causa do stress. Sua mão está normal.

NICHOLAS: Hum. Seria mais nobre se tivessem cortado meus dedos.


Os enfermeiros se retiram a pedido da psicóloga.


PSICÓLOGA: Como o senhor se sente?

NICHOLAS: Inútil.

PSICÓLOGA: O que a gente pode fazer para o senhor se sentir melhor? Pensa em algo interessante.

NICHOLAS: Ainda não inventaram esperança em cápsula, filha. Um whisky. Algo forte cairia bem.

PSICÓLOGA: O álcool não é permitido, infelizmente.

NICHOLAS: Nada é permitido. Nem abrir as minhas próprias mãos.

PSICÓLOGA: Eu lamento, senhor. Você se sente limitado nos seus afazeres, dependente, certo?

NICHOLAS: Sim, não é óbvio? Você precisa repetir o que eu acabei de falar para parecer empática comigo? Em que cartilha te ensinaram essa merda? Eles ensinam isso na graduação?

PSICÓLOGA: Senhor, calma lá, estou apenas tentando estabelecer um diálogo. Sei que seu momento não é fácil. Mas também sei que podemos pensar numa saída juntos.

NICHOLAS: Eu tive uma ideia ótima: eutanásia.

PSICÓLOGA: O senhor não tem mais vontade de viver?

NICHOLAS: Eu sempre tive muita vontade de viver.

PSICÓLOGA: É mesmo? Por que não fala mais sobre isso?

NICHOLAS: Eu rasguei ao meio cada doença que apareceu no meu caminho. Reduzi cada obstáculo a nada. Amassei com toda a minha força ( faz um pequeno movimento levantando um pouco os punhos da cama). Eu amei a vida desgraçadamente. Eu dei tudo pela vida. E agora olha o que ela fez por mim. Olha isso... Ficar deitado numa cama. Ser tratado como um coitado... O único contato físico que tenho é quando limpam o meu rabo. Me furam o dia inteiro, violam meu corpo e todas as minhas vontades são tidas como capricho. E arde... O lado direito do meu corpo dói muito. Pelo que vi no espelho, as queimaduras não vão se regenerar. Eu já aceitei: ou saio daqui como um monstro ou saio morto. A vida cuspiu na minha cara.

PSICÓLOGA: Calma! Os médicos dizem que sua cura é bem possível sim.

NICHOLAS: Os médicos acham tudo fácil quando se trata da pele dos outros.

PSICÓLOGA: Você sabia que todos os pacientes desta ala citam o senhor? E nunca é uma descrição ruim. Você é visto com muita resiliência. Está longe do poço de dor em que se coloca. Eles falam que nunca houve um soldado com tanta voz no exército, mesmo não tendo nenhuma patente.

NICHOLAS: Sim, eu fiz questão de me manter soldado a vida toda. Eu até pude ascender, mas não quis.

PSICÓLOGA: O senhor quer me contar mais sobre isso?

NICHOLAS: Para você botar na sua tese de doutorado? Para atualizar o arsenal de doenças psicológicas do DSM? Você pode propor no próximo congresso a inclusão da minha situação: síndrome de baixa hierarquia, o que acha?

PSICÓLOGA: (risos) Não, senhor. Não farei isso.

NICHOLAS: (ameaça rir um pouco) Na época do alistamento pensei: "Ok, eu não gostaria de servir ao exército como o conheço hoje, mas a que exército do amanhã eu gostaria de servir?". E foi assim com tudo o que fiz na vida. Eu não sirvo aos meus pais nem ao meu país. Nunca quis ganhar elogios enfadonhos por aceitar me submeter a doutores convencidos e convenções vazias. Eu nunca quis servir a nada que não fosse à verdadeira força da natureza.


PARTE 8


PSICÓLOGA: Interessante...

NICHOLAS: O exército é um símbolo de potência física. Mas a real intenção era usar minha força a serviço de um propósito espiritual.

PSICÓLOGA: Entendi... Você sente falta de fazer alguma atividade física?

NICHOLAS: Eu queria carregar umas pedras gigantes, sabe?

PSICÓLOGA: (risos) Vou conversar com a fisioterapeuta para ver o que podemos fazer.

NICHOLAS: Seria ótimo.

PSICÓLOGA: Pouco antes de ser dopado, você falou muito sobre um tigre. Que tigre é esse? Você se lembra?

NICHOLAS: Sim. O tigre não sou eu mesmo transmutado em símbolo de força para compensar minha condição de confinamento, lamento decepcioná-la... Este tigre é real. Houve um tigre de carne e osso. E com heterocromia.

PSICÓLOGA: Heterocromia? Um tigre com um olho de cada cor?

NICHOLAS: Sim. O olho direito na cor amarela, justamente a bandeira de Birrah do Sul. O olho esquerdo na cor verde, justamente a bandeira de Birrah do Norte.

PSICÓLOGA: Onde você viu esse tigre?

NICHOLAS: Ficava numa das mais cruéis prisões de guerra do sul. O general Theodor o mantinha sob constante estresse, tortura e privação de comida. Queria deixar a fera raivosa para estar apta a devorar impiedosamente os opositores políticos, quando jogados à jaula. Muitos de Birrah do Norte foram mortos dessa forma. Era terrível.

PSICÓLOGA: Eu nunca ouvi falar disso.

NICHOLAS: É segredo de guerra.

PSICÓLOGA: Você vai me desculpar, mas é melhor você não me falar sobre isso. Prefiro não me envolver com questões políticas, sabe?

NICHOLAS: Claro. Ser precavido é importante nesses tempos.

PSICÓLOGA: E o que você quis dizer com: "vou soltar todos os tigres que o general trouxer"? ( pergunta enquanto lê um bloquinho). Você lembra de ter dito isso aqui no hospital?

NICHOLAS: Lembro. Eu literalmente soltei esse tigre de que te falei. Não aguentava mais presenciar aquele espetáculo doentio.

PSICÓLOGA: E como você fez isso?

NICHOLAS: Quer saber se é verdade mesmo né?

PSICÓLOGA: É o senhor que me parece desconfiado. Sempre me perguntando e tentando interpretar meus pensamentos... Eu não disse nada, estou apenas te ouvindo.

NICHOLAS: Hum, pode até ser. Mas acho que você escreveu "louco" aí.

PSICÓLOGA: A única coisa que estou pensando é que você está sofrendo.

NICHOLAS: É verdade. A minha humanidade chegou no limite naquela guerra, sabe? Mesmo não cometendo violência, eu fazia parte de um batalhão violento. Então eu tinha uma participação indireta, isso me incomodava demais. Eu tinha responsabilidade por estar lá vendo a injustiça tão de perto. O mínimo que eu podia fazer era soltar o tigre, ainda mais conhecendo a história daquele tigre.

PSICÓLOGA: Que história?

NICHOLAS: Ele foi criado desde pequeno por Theodor para ser uma máquina de tortura.

PSICÓLOGA: E você o soltou de uma hora para outra?

NICHOLAS: No dia em que decidi libertá-lo, quebrei as jaulas com a força e algumas ferramentas simples. Antes, claro, alimentei o tigre com um pacote com minhas refeições guardadas de uma semana. Ou seja, passei fome no lugar dele. E ele pareceu entender isso. Eu precisava nutri-lo para que confiasse em mim.

PSICÓLOGA: E deu certo?

NICHOLAS: De madrugada, saí do front segurando ele pela coleira. Eu queria fazer um ato simbólico contra a tortura e a favor do armistício. Ia soltar o tigre na selva, na frente da tropa inimiga do norte, e em seguida me entregar.

PSICÓLOGA: É um gesto ambicioso.

NICHOLAS: Para você entender o que aconteceu, preciso lhe falar um pouco do sistema de segurança de Birrah do Norte, ok?

PSICÓLOGA: Tudo bem.

NICHOLAS: À noite, eles ligavam um sensor de inteligência artificial, com detectores de movimento prontos para disparar metralhadoras automáticas a qualquer sinal da tropa inimiga. Ou seja, se você tivesse qualquer item do sul: tatuagem, distintivo, fotografia, uniforme ou bandeira, as atiradoras te alvejavam.

PSICÓLOGA: Estranho. Era só se encher de itens do norte para conseguir passar sem ser notado pelas metralhadoras?

NICHOLAS: Sim. Você precisa entender o contexto... A polarização política era tanta que os soldados sentiriam nojo de vestir algo do adversário, até mesmo provisoriamente. Por isso a estratégia funcionava.

PSICÓLOGA: E você não sentia essa repulsa?

NICHOLAS: Doutora, eu sou um apátrida... Eu me enrolei nas duas bandeiras: a do sul e a do norte. E corri eu e o tigre, em direção à zona de fronteira.

PSICÓLOGA: E chegou do outro lado? (voz desconfiada)

NICHOLAS: Quase. Nos primeiros quilômetros, tudo parecia conspirar para o sucesso: a noite não estava muito fria, o caminho parecia pavimentado, o tigre não oferecia resistência alguma. Eu contava com que as duas bandeiras entrelaçadas em meu corpo confundissem os sensores das atiradoras automáticas. Mas uma proporção um pouco maior da bandeira do sul pendeu para o lado direito do meu corpo, então começaram os apitos. As máquinas se ergueram e me fuzilaram só do lado direito!

PSICÓLOGA: Só do lado direito?

NICHOLAS: Sim. A maioria dos tiros foram de raspão, mas acertaram 26 balas. Eu fui persistente. Continuei correndo pois achei que a velocidade me salvaria em algum momento. Chegou a um ponto que não aguentei e acabei tombando no chão há apenas alguns centímetros da zona de fronteira. Como eu ainda estava no território do sul, foi feito um acordo de cavalheiros e permitiram meu resgate. Theodor mandou me buscarem. E o tigre fugiu.

PSICÓLOGA: É uma história e tanto.

NICHOLAS: Seria ainda melhor se eu tivesse chegado do outro lado.

PSICÓLOGA: Por isso que você só está enfaixado do lado direito?

NICHOLAS: Exatamente.

PSICÓLOGA: Nicholas, eu não tenho como saber de tudo o que você passou. Sair de uma experiência traumatizante pode deixar a gente perdido mesmo. Não acho você louco, acho que você precisa pôr para fora suas angústias.

NICHOLAS: Acabei sobrevivendo, mas na prática me sinto bastante morto, sabe? Quando recobrei a consciência depois daquele episódio, abri os olhos e vi Theodor me encarando como quem avalia um corpo no necrotério. Minha relação com ele nunca mais foi a mesma depois daquilo Fui preso por alta insubordinação e fui levemente torturado. Digo leve, porque vi Theodor fazer coisas muito piores. Desde então ele boicotou minha presença em todas as missões importantes, me relegando à função de almoxarifado e transporte de cargas.


Abre a porta do quarto do hospital


Entra a moça da copa, trazendo o jantar.


PSICÓLOGA: Vou deixar o senhor comer, depois conversamos.

NICHOLAS: É uma excelente ideia. Seria bom liberar as minhas mãos para eu poder pegar o garfo pelo menos.

PSICÓLOGA: Faremos isso.


PARTE 9


Nicholas espeta um penne al pomodoro, morde ao meio e saboreia. Diminui o ar condicionado para não esfriar o prato e prolongar o seu maior momento de prazer dos últimos tempos.


Depois liga a TV num canal de viagens.


Estão passando belas imagens da zona de fronteira de Birrah, uma região inabitada, com muita biodiversidade e riquezas naturais.


As águas do sul e do norte são naturalmente separadas por uma grande montanha negra rochosa, que circunda o litoral.


Nicholas contempla a cena e derrama algumas lágrimas, enquanto fala consigo mesmo em pensamento:


"Fazer uma guerra é querer balear a si mesmo em um dos lados do próprio corpo."


PARTE 10


A porta do quarto abre lentamente.


Entra um sujeito de olhar mórbido.


Tira as luvas pretas e ronda o corpo do paciente.


Dois sentinelas seguram a porta pelo lado de fora para garantir que ninguém mais entre.


NICHOLAS: Theodor?

THEODOR: Então a visão do capitão-formiga ainda está boa, hum? De resto, você está mal ao que parece... Fui informado de que anda surtando. Vim testemunhar com meus próprios olhos a sua decadência.


Theodor deixa apenas uma luz lateral acesa.Tira os óculos escuros, puxa uma cadeira e senta bem próximo ao doente, com o encosto da cadeira invertido, apoiado no peito.


THEODOR: É estranho ver o jogo virar, não? Agora é você que está tomado por uma crise de nervos.

NICHOLAS: Tem uma coisa que é bem diferente entre nós. Quando você está hospitalizado, fica igual a uma garotinha. Quando recobra a saúde e tem força, se dá ao luxo de ser o paladino do caos. Já eu viro o paladino do caos quando estou enfermo.

THEODOR: E volta a ser uma garotinha em situações normais?

NICHOLAS: Quase isso... Mas conte-me... Quando você vai anunciar o cessar-fogo?

THEODOR: Que audácia hein, filho? Não lute contra o que não pode vencer... Precisamos ser firmes para a guerra não virar. Eu sou o rosto que essa nação quer ver. Birrah do Sul é nossa maior referência, pois o norte está completamente devastado no pós-guerra.

NICHOLAS: E o general Raniére? Está bem? Não tenho acompanhado o noticiário direito.

THEODOR: O ceguinho? Ah não... Não está nada bem de saúde. Acredito que renuncie. O norte já teria colapsado se não fosse minha clemência com essas merdas assistencialistas, tipo cestas básicas e medicamentos. Claramente o sul é o lado mais digno.

NICHOLAS: Eu duvido bastante da sua dignidade.

THEODOR: Quando você vai aprender a respeitar a hierarquia, hum?

NICHOLAS: Minha hierarquia é muito além de você. Para mim você ainda é um soldado iniciante. E ao contrário de meus colegas, que ficam com torcicolo, virando a cabeça para não olhá-lo de frente, eu falo isso com todas as letras e olho no olho.

THEODOR: Ora... ( bate palmas com ironia, depois esmaga com o punho um copo de plástico que estava na mesa retrátil de refeições )

THEODOR: ( se aproxima de Nick com bafo de álcool e fala baixinho no ouvido) Me surpreende que um sujeito com tantos pecados e tanta insubordinação esteja ainda com funções vitais aceitáveis. Por que a gente não piora um pouco sua saúde, hum? Seria mais justo... Como é bom ver você assim enfermo, tratado como lixo. Nesse hospital onde ninguém sabe nada do que você foi antes de chegar aqui. E ao se deparar com a falta de autonomia, o que você faz? Tenta ser parecido comigo! Emburra a cara, ironiza as enfermeiras, chama os outros de filho, responde com "hum". Ai meu Deus! (risos) Este mundo tem uma justiça implícita! Você está emulando as minhas expressões no seu rosto! Chego a ver uma nova ruga na sua testa na mesma altura da minha. Aceite que você morreu e eu nasci em você! Pare de desafiar minha liderança. Você é uma formiga, nada além disso. Ocupe seu lugar e seja o reflexo pálido da minha potência. A verdade vai te libertar de toda a sua mácula, de todo o seu equívoco. Olhe para o seu estado! Você está em posição de me peitar? Se eu quiser eu arranco esses fios e te asfixio com um travesseiro. Ou te dou um tiro na testa com este silenciador. Ou quebro seu pescoço com as mãos como se fosse uma galinha... São tantas opções que eu fico até na dúvida. Qual seria a sua favorita?

NICHOLAS: Fique à vontade para escolher uma delas. A covardia sempre foi o seu forte.

THEODOR: Deixa eu ver sua mão esquerda. Os médicos falaram que o sangue está circulando bem no polegar e no indicador esquerdo, não é isso? Vamos agradecer a Deus por isso? Fazer uma pequena oração só nós dois?

NICHOLAS: Não vejo problema.


Theodor tira um lenço do paletó e amarra a boca de Nick. Pega um instrumento de madeira parecido com uma palmatória e dá 5 golpes seguidos entre o indicador e o polegar esquerdo de Nick. As mãos ficam extremamente vermelhas. Nick dá gritos abafados e morde os lábios. Theodor alisa sadicamente os cabelos de Nick.


THEODOR: Pronto. Isso é para você aprender a não dar informação sigilosa para psicólogos ou médicos, tá, meu querido?

NICHOLAS: Você tem espiões no hospital? Isso é porque mencionei o tigre?

THEODOR: Eu estou em todos os lugares, tolo. Formigas como você a gente simplesmente pisa se incomodam demais. Dê graças a Deus por estar do lado certo e pela minha misericórdia para com a sua vida.

NICHOLAS: Você ainda treme de medo de tigre né?

THEODOR: Que tigre?

NICHOLAS: Aquele que tinha um olho de cada cor, que você tentou acertar no meio da cabeça e não conseguiu, que te olhava em atitude desafiadora e te tirava o sono.

THEODOR: Nick, continue com essas histórias e você vai sair daqui direto para o sanatório.

NICHOLAS: Eu não vou mentir, Theodor.


Theodor segura o instrumento de madeira e bate mais 10 vezes na boca de Nick.


THEODOR: Nunca mais repita isso, tá?


Theodor pega alguns lenços de papel no armário e entrega para que Nicholas limpe o sangue da boca.


Apanha também um copo de plástico, enche com água e vira em pequenas doses na boca de Nicholas para ajudar a lavar o ferimento.


Alisa novamente os cabelos de Nick, com uma voz assustadoramente calma e maternal depois do rompante de violência.


THEODOR: Durma bem, filho.


PARTE 11


Theodor se retira, deixando a porta entreaberta.


Isso permite que Nicholas veja as sombras dos que passam no corredor se projetando no teto do quarto e em cima de seu corpo, como se o pisoteassem com enormes pernas sombrias e angulares.


Um tanto anestesiado pelas pancadas, ele recosta um pouco para o lado e arrisca um cochilo.


Mas por algum defeito técnico na campainha de enfermagem, é obrigado a escutar os médicos e enfermeiros falando mal dele a noite toda.


É um consenso geral: Nicholas torna a vida de todos um inferno. Acusam-no de narcisista, pouco empático, machista, inconveniente, mau-humorado, rabugento, mimado, teimoso, impaciente e aficcionado por chás.


Ele passa a noite praticamente em claro, ouvindo atentamente às queixas.


Já quase amanhecendo, liga a TV e assiste a uma retransmissão de um jogo de futebol:


Um pênalti acaba de ser anulado. O atacante se prepara para bater de novo. Os movimentos são tão idênticos que mais parece um replay. Só que dessa vez ele acerta o chute, aos 90 minutos do segundo tempo.


PARTE 12


Alguém abre a porta do quarto


ENFERMEIRO1: Tudo bem? (fica surpreso diante da serenidade do paciente)

NICHOLAS: Tudo ótimo.

ENFERMEIRO1: Conseguiu dormir?

NICHOLAS: Tive um pouco de dificuldade. Sinto as mãos dormentes. O médico vem ainda hoje?

ENFERMEIRO1: Vai te ver amanhã de manhã. Pediu para aumentar a dose do intentus. Aqui senhor, tome seu remédio.

NICHOLAS: Me diz uma coisa, como anda sua família?

ENFERMEIRO1: Como?

NICHOLAS: Você nunca me contou se está tudo bem com você. Você tem filhos?

ENFERMEIRO1: Sim, tenho uma filha, agradeço o interesse. Você está bem?

NICHOLAS: Sim. Esta noite, entre um cochilo e outro, ouvi vozes que me aconselharam a parar de tratar vocês como se eu não me importasse. É que sinto muita dor e às vezes é difícil para mim manter um comportamento minimamente aceitável.

ENFERMEIRO1: Claro, claro. É comum.

NICHOLAS: De qualquer forma, desculpa.

ENFERMEIRO1: Com toda a certeza! Vou ligar um pouco as luzes tá? Para verificar seus aparelhos.

NICHOLAS: Pode acender.

ENFERMEIRO1: O que é isso? O senhor se feriu na boca?


Nicholas passa os dedos nos lábios e vê que ainda sai um pouco de sangue.


NICHOLAS: Pelo jeito sim.

ENFERMEIRO1: Caiu da cama?

NICHOLAS: Não. Foi uma pequena demonstração de afeto do nosso querido general Theodor.

ENFERMEIRO1: Como assim?

NICHOLAS: A realidade veio aqui sem avisar, fez uma visita relâmpago e me deu uma surra.

ENFERMEIRO: Nós vamos tratar disso tá? (aperta a campainha e pede reforços no posto de enfermagem)


PARTE 13


Moça da copa entra no quarto


MOÇA: Posso retirar a bandeja, senhor?

NICHOLAS: Sim. Posso te contar um negócio?

MOÇA: Se for rapidinho, sim.

NICHOLAS: Devem ter te falado que sou insuportável. Eu concordo. Queria te dizer algo e você pode espalhar para quem você quiser: Eu vou me esforçar para tratar todos vocês melhor, apesar da dor desgraçada que sinto em todo o meu corpo. O sofrimento tira a gente do nosso melhor. Eu peço para aumentarem os analgésicos, mas tem um limite que eles se recusam a ampliar e eu continuo sofrendo o dia inteiro. Os médicos acham que eu preciso ficar lúcido para não morrer.

MOÇA: Eu lamento, senhor.

NICHOLAS: Queria te falar de outra coisa importante também. Uma lembrança do que vivi na guerra.

MOÇA: Tudo bem.

NICHOLAS: Estávamos dentro de um túnel subterrâneo, numa operação de recuo de emergência. Quando chegamos nas coordenadas previstas de saída, o alçapão estava vedado com pedras gigantes pelo lado de dentro. A ordem do general foi colocar explosivos imediatamente, mesmo sabendo que muitos dos nossos morreriam. Eu percebi a situação desafiadora e forcei-me a achar outro jeito. Notei que havia uma única pedra mantendo todas as outras agrupadas. Se eu tirasse essa pedra, todas cairiam e a tropa toda poderia passar ilesa. Puxei-a com todas as minhas forças! E tudo deu certo. Era só tirar uma única pedra.

MOÇA: Que bom...

NICHOLAS: Quero compartilhar coisas importantes, porque meu tempo está acabando, sabe? Antes de partir preciso me focar em um último problema, uma última pedra a ser retirada.

MOÇA: Nossa... Que problema?

NICHOLAS: O general Theodor pretende dar um golpe de estado. Está querendo aproveitar a vulnerabilidade do norte. Vai contratar mercenários para tirar Raniére do poder e construir um novo governo militar no norte, mais favorável ao sul.

MOÇA: Senhor, me perdoe, mas será que não foi efeito de algum remédio?

NICHOLAS: Se eu já estou te contando isso de cara limpa... imagine quando aumentarem a dosagem... Quem sabe não te falarei de gigantes, extraterrestres e sereias.

MOÇA: Você quer mudar a política do país daí dessa cama de hospital?

NICHOLAS: Bastante desafiador, não?

MOÇA: Bota desafiador nisso, senhor.


Os enfermeiros voltam para o quarto de Nicholas.


A moça da copa pede licença e se retira.


Fazem curativos nos lábios de Nicholas.


PARTE 14


ENFERMEIRA: Oi de novo, seu Nicholas, preparado para o banho?

NICHOLAS: Sim. Sua experiência em banhos rápidos é bem vinda. Tenho muito a fazer ao longo do dia.

ENFERMEIRA: Que bom! Hoje fiquei sabendo que tem o chá de hortelã que o senhor gosta. Eu falei pessoalmente com a copa. Eles garantiram que vão trazer.

NICHOLAS: Obrigado. Eu não sei por quanto tempo ainda verei o rosto de vocês... Provavelmente serão os últimos olhos que meus olhos vão testemunhar... Eu queria agradecer, de verdade.

ENFERMEIRA: Para com isso. Você vai sair dessa. Eu senti desde a primeira vez que te vi.

ENFERMEIRO1: Eu também acho. Sonhei esta noite com o dia da alta do senhor: você andava pelo corredor com duas bengalas, aplaudido pelos soldados.

NICHOLAS: Gostaria que vocês soubessem que estou fazendo o meu máximo para não descarrilhar para o desespero. Para não deixar a dor me dominar e com isso afundar de vez o que sobrou do meu caráter. (olhos lacrimejando) Não quero irradiar meu sofrimento para vocês. Eu vou absorver a minha dor enquanto posso, até o limite que der, para que os dias sejam melhores. Quero que vocês tenham uma memória boa de mim nesses últimos momentos.

ENFERMEIRA: Claro, seu Nicholas. Vamos fazer o possível para a sua hospedagem ser mais agradável também.

NICHOLAS: Eu quero fazer desse quarto um santuário, para purificar um pouco a minha alma.

ENFERMEIRO1: Você vai voltar para casa, senhor, acredite.

NICHOLAS: Eu sei, meu caro. Vou voltar para a minha verdadeira casa.


PARTE 15


O médico entra no quarto


DOUTOR: Dormiu bem, senhor Nicholas?

NICHOLAS: Sim. Estou mais tranquilo.

DOUTOR: Ótimo. A equipe médica passou a noite discutindo o seu caso. Foi unânime entre os especialistas que você contraiu a doença de Aquarius aqui no hospital, devido a comorbidades e internação prolongada.

NICHOLAS: Isso é muito ruim?

DOUTOR: É um quadro raro, senhor. Os doentes costumam perder progressivamente as sensações físicas dos sentidos. Os órgãos se colam e se misturam, como se não tivessem mais fronteira. Perdem também a noção dos limites entre si e o mundo.

NICHOLAS: Me soa um tanto psicodélico.

DOUTOR: Alguns percebem dessa forma... Você tem sentido algo do tipo?

NICHOLAS: Um pouco. Mas eu sempre fui assim, não é de agora não. Tem possibilidade de cura?

DOUTOR: Infelizmente não... Você que vai decidir se prefere voltar para casa ou se prefere viver seus últimos dias amparado no hospital. Mas vamos aguardar um pouco mais...

NICHOLAS: Eu posso ter uma vida normal se conseguir sair daqui?

DOUTOR: Mais ou menos. Você terá alguma dificuldade para andar. E certamente terá que usar bengalas.

NICHOLAS: Quanto tempo eu teria de vida?

DOUTOR: No máximo 10 dias.

NICHOLAS: Ok ( suspiro)

DOUTOR: Lamento, senhor. Quem sabe você não supere mais essa? Às vezes a medicina não é muito exata.

NICHOLAS: Às vezes é tão exata que chega a ser constrangedora.

DOUTOR: Estamos todos por um triz. Eu posso sair de carro, bater e ficar paralítico... A gente não tem certeza de nada.... A vida bem vivida não é fazer um cruzeiro cinematográfico no Caribe. O que nós temos são pequenos momentos. Agora por exemplo... o melhor da vida é o seu lanche que vai chegar daqui a pouco. É essa televisão que vai passar um filme relaxante. É uma visita de um ente querido. Esses momentos são tudo. E você pode vivê-los intensamente, sem pensar no amanhã.

NICHOLAS: É uma boa maneira de pensar, doutor, mas me parece tão pouco.

DOUTOR: O que você gostaria de fazer nesses dias?

NICHOLAS: Seria um pouco mais fácil não carregar o peso enorme de uma missão inconclusa. Mas eu não posso delegar minha responsabilidade, infelizmente. Vou lutar por ela até o final, enquanto meu corpo aguentar.

DOUTOR: Nós vamos achar um sedativo melhor...

NICHOLAS: Não existe Birrah do Norte ou Birrah do Sul, doutor. Não existe fronteira. Só existe um país.

DOUTOR: Isso é um sintoma normal da doença de Aquarius...

NICHOLAS: Não, doutor! É o que estou tentando te dizer! Isso vem de muito antes. Tem todo um trabalho anterior a mim, que atravessou a minha vida e que ainda espera por uma última atitude minha para que o nó seja desfeito. Se não for sanado agora, nessa geração, não terá mais volta! A questão política do nosso país ainda está em fase de tratamento precoce. Depois não vai ser mais passível de reversão.

DOUTOR: Lamento, senhor. Eu não posso te ajudar nesse campo. Posso chamar a psicóloga?

NICHOLAS: É, eu acho que sim.


PARTE 16


A copeira entra no quarto


COPEIRA: Chá de hortelã chegando!

NICHOLAS: Graças a Deus!

COPEIRA: Você sempre gostou tanto assim de chá?

NICHOLAS: Na guerra a gente tomava uma mistura de ervas refrescantes. Era bom para deixar o nariz desentupido.

COPEIRA: O senhor era soldado? Atirou em muita gente? ( imita arma com um gesto de mão)

NICHOLAS: Deus me livre!

COPEIRA: Ué, mas você não foi para guerra? Você era médico ou cozinheiro para não ter que atirar?

NICHOLAS: Era soldado mesmo. Da linha de frente. Mas me recusei a atirar.

COPEIRA: Por quê?

NICHOLAS: Eu tenho valores muito fortes, sabe? Acredito que matar é uma falta gravíssima. Só é permitido ser impiedoso com os próprios pensamentos negativos. Fui um grande assassino de pensamentos disfuncionais e bizarros. Tenho as mãos sujas desse sangue azul mais sutil. É permitido passar a faca no espírito, como um cirurgião que tira um tecido necrosado de mentalidades ruins que vão criar mundos ruins. Mas não é permitido passar a faca na matéria. Quando o mal se cristaliza, já é tarde para mudar.

COPEIRA: (um pouco assustada) E então, dá para mexer as mãos? Ou quer que eu te ajude com o chá?

NICHOLAS: Eu te agradeço muito se deixar o chá em infusão.

COPEIRA: Tudo bem. Vai querer torrada também?

NICHOLAS: Não, só o chá. Eu quero valorizar a presença desse chá.


PARTE 17


Um enfermeiro entra no quarto


ENFERMEIRO: Posso falar com o senhor um instante?

NICHOLAS: Sim, fica à vontade. Eu queria te receber melhor, mas no momento só tenho água e biscoito maisena.

ENFERMEIRO:(risos) Fiquei mexido com o seu esforço para ser uma pessoa melhor. Sabe, não sei se é da crença do senhor, mas resolvi trazer uma imagem religiosa que já operou verdadeiros milagres para mim. Ela se chama wexa. Você aceita?

NICHOLAS: Aceito. Vou precisar de ajuda mesmo. O nó que eu preciso desatar é imenso. É um nó cego.

ENFERMEIRO: Tenha fé. Wexa vai te ajudar.

NICHOLAS: Bota num ângulo em que ela possa ver o quarto todo, só para garantir.


O enfermeiro faz um cumprimento afirmativo com a cabeça.


Entra no quarto um técnico com um aparelho móvel de raio-x.


TÉCNICO: Vamos precisar fazer um exame agora, tudo bem?

NICHOLAS: Não tem como esperar uns 10 minutinhos para eu tomar o chá?

TÉCNICO: O médico pediu urgência, senhor.

NICHOLAS: Deus... Tira essa foto do meu mundo interno, vai...


(O técnico arregala um pouco o olho e ajeita os óculos com o indicador.)


Nick passa o procedimento todo de olhos fechados, misturando as memórias de cachoeiras nebulizadas com o caleidoscópio de imagens saturadas de TV.


No final do exame, ao recolher a máquina de raio-x, por acidente, a quina do aparelho esbarra na prateleira onde estava a imagem de wexa.


Ela trepida, cai no chão e com o impacto, quebra a cabeça, que se desprende do corpo.


O técnico recoloca constrangido a santa na prateleira, apoiando como dá, com a fratura exposta no pescoço de gesso.


Nicholas afunda o dedo indicador na caneca para medir a temperatura do chá. Já está gelado.


PARTE 18


A psicóloga entra no quarto


PSICÓLOGA: Que bom te ver! Você está bem melhor que da última vez.

NICHOLAS: Você acha?

PSICÓLOGA: Sim. Conseguiu tomar seu chá?

NICHOLAS: Mais ou menos.

PSICÓLOGA: Você quer que eu volte mais tarde?

NICHOLAS: Não, pode ficar.

PSICÓLOGA: Tudo bem.

NICHOLAS: Doutora, está chegando a minha hora.

PSICÓLOGA: Por que você acha isso?

NICHOLAS: As estruturas estão quebrando. Eu estou virando outro, me perdendo de mim, me misturando com o mar de energias do mundo.

PSICÓLOGA: É a evolução da sua doença. É normal.

NICHOLAS: E se eu não quiser enxergar isso como doença? E se eu te disser que vou trazer algum tipo de cura para o mundo depois da minha morte? E se o que você chama de doença puder parar a guerra?

PSICÓLOGA: Como assim?

NICHOLAS: Escute: não tem saída nem com Theodor nem com Raniére. Eu vivi nas duas Birrahs. Conheço os dois de perto. Raniére quer unir o país para ditar as regras. Theodor quer separar o país para ditar as regras. Unir e separar dá no mesmo.

PSICÓLOGA: O senhor tem uma posição política peculiar.

NICHOLAS: Eu não aceito que não haja uma terceira opção.

PSICÓLOGA: Não é melhor a gente se focar no que temos controle? A sua vida, as pequenas coisas, a recuperação...

NICHOLAS: Recuperação, doutora? Agora você que está sendo idealista...

PSICÓLOGA: Olha só: se os dois generais são maléficos, o que você pode fazer para não ser que nem eles? Não é isso o que você está tentando fazer? Mudar seu comportamento? Isso já não é uma grande vitória? Você está afetando todos nós positivamente. Para que se ocupar com questões tão distantes? Já está fazendo o melhor ao seu alcance, não acha?

NICHOLAS: Não, doutora. Theodor e Raniére são um reflexo do que somos. Isso quer dizer que uma parte de mim é baixa e tem afinidade com o lodo do poder. Eu quero me purificar... Eu me esforço... Mas a questão é a seguinte: eu no lugar deles faria diferente?

PSICÓLOGA: Se você resolver suas angústias em você mesmo, você está resolvendo por eles, não acha?

NICHOLAS: Aos 90 minutos do segundo tempo, doutora?

PSICÓLOGA: Nunca é tarde.

NICHOLAS: Eu precisava estar numa alta posição de poder e ainda assim conseguir me manter fiel ao que acredito. Só assim eu saberia se sou honrado. Daqui é simples... Dessa cama é fácil morrer e me achar leve e beato. Não é suficiente. Eu quero ter um poder absurdo em mãos e estando de posse desse poder escolher usá-lo para favorecer o coletivo. Só dessa forma o tigre será liberto da fome predatória. Só dessa forma acabará o ressentimento nesse país.

PSICÓLOGA: De que poder você está falando?

NICHOLAS: De um maremoto nunca antes visto. Eu vou deixar um legado, doutora. Eu não passei por tudo isso em vão.

PSICÓLOGA: O que você gostaria de deixar quando partir?

NICHOLAS: Dignidade.

PSICÓLOGA: Mas como exatamente? O senhor está falando em termos muito abstratos...

NICHOLAS: Você vai ver nos noticiários.

PSICÓLOGA: Você pretende aparecer na TV?

NICHOLAS: De certa forma sim.

PSICÓLOGA: Não quero desmotivá-lo... É bonito ver você cultivando essa vontade toda... mas... se quer um conselho: faça pequenas coisas, senão você vai se frustrar.

NICHOLAS: Deixe a sua TV ligada.

PSICÓLOGA: Está bem.

NICHOLAS: Obrigado por aguentar minhas maluquices, tá?

PSICÓLOGA: Que nada.

NICHOLAS: Se eu tivesse seu trabalho, já teria dado um tiro na minha cabeça.

PSICÓLOGA: Eu faria o mesmo se tivesse o seu.

NICHOLAS: (risos) Foi bom te conhecer.

PSICÓLOGA: Nick...

NICHOLAS: É um fato, doutora. Eu estou acabando.

PSICÓLOGA: Vamos aguardar o resultado do exame... Você não gosta de sonhar alto? Por que não se imagina saindo desse hospital?

NICHOLAS: Eu já estou cansado... Você consegue imaginar por mim?

PSICÓLOGA: Sim Nick. Eu vou imaginar por você. (olhos marejados)


PARTE 19


Por volta das 3 da manhã, o hospital entra em contato com a única pessoa que havia visitado o doente: Theodor.


A notícia lhe chegou pela assessoria presidencial. Era um tema bem distante das maiores preocupações do governo, mas ao ver o nome de Nicholas nas notificações, não hesitou em ir.


Ao chegar no hall de entrada, avista o médico conversando com uma visita nada prevista: Raniére, com sua inconfundível bengala verde.


Ouvindo os passos do adversário, Raniére vira-se na direção correta com precisão e se antecipa na apresentação:


RANIÉRE: Boa noite, general. Lamento ter violado nosso acordo de isolamento. Eu tive que atravessar a fronteira. Preciso ver Nicholas.

THEODOR: Depois a gente resolve isso. Como está o quadro clínico, doutor?

MÉDICO: Acabamos de fazer uma cirurgia de emergência, mas infelizmente ele não resistiu. Teve uma parada cardíaca fulminante e veio a óbito.

THEODOR: Como assim? Você viu direito? Avaliou os sinais vitais?

MÉDICO: Sim, senhor, tentamos de tudo.

THEODOR: Nick morreu?

RANIÉRE: Também demorei a acreditar...

THEODOR: Isso não pode ser verdade. Eu falei com ele há poucos dias.

RANIÉRE: Pelo menos você conseguiu ter alguma conversa com ele. Eu tinha certeza que ia conseguir chegar a tempo. Até trouxe minha melhor bengala na intenção de entregar a ele na reabilitação...

MÉDICO: Ele lutou até o fim. Foi um grande guerreiro.

THEODOR: Francamente.... Morrer para uma doençazinha dessas? Não faz sentido. Ele era muito forte.

MÉDICO: Tem algo a mais que preciso lhes contar. Ele queria que as cinzas fossem jogadas no mar, na zona de fronteira.

THEODOR: Ingênuo. Como se isso fosse possível.

RANIÉRE: Nós até podemos dar um jeito.

MÉDICO: Senhores, com licença, vou deixá-los à vontade.

RANIÉRE: Obrigado.

THEODOR: Escute, Raniére...

RANIÉRE: Sou todo ouvidos, literalmente, já que não tenho olhos funcionais.

THEODOR: Excepcionalmente eu não vou puni-lo por ter vindo para cá. Mas que fique claro: volte para o norte em até 48 horas.

RANIÉRE: Eu não ficaria mais do que isso nessas terras.

THEODOR: Que bom. Vamos para uma sala reservada combinar o que faremos?

RANIÉRE: Você está me chamando para conversar?

THEODOR: Só esta noite. É uma situação anômala que exige certas exceções.


PARTE 20


Na sala reservada


THEODOR: Acho que agora posso te perguntar: por que você baniu Nick do seu país?

RANIÉRE: Ele estava prestes a ser condenado à morte por insubordinação, você sabe do que estou falando... Eu só tive uma saída: expulsá-lo do país para poupar-lhe a vida.

THEODOR: Jurava que fosse uma manobra sua para tentar infiltrar um espião na minha tropa.

RANIÉRE: Eu até quis fazer isso, mas Nick foi contra.

THEODOR: Tive de testá-lo de todas as formas para confiar nele minimamente. O que me fez aceitá-lo foi que o desgraçado sempre saía vivo de qualquer emboscada...

RANIÉRE: Havia uma grandeza em Nick, algo que repelia a morte. Foi o melhor soldado que tive. Se ele tivesse usado toda aquela força com o objetivo certo, certamente nós que teríamos ganhado a guerra.

THEODOR: Não sei. Ter um Nick no time pode parecer um trunfo, mas se torna um peso quando você percebe que nunca seguirá suas ordens. Eu sempre me perguntei: o que Nick queria afinal?

RANIÉRE: Que nós dois renunciássemos.

THEODOR: Ele te disse isso?

RANIÉRE: Sim. Mandava cartas falando que eu e você não temos sustância. Que somos apenas atores dublando sonhos e dores do eleitorado. Que vivemos redublando o velho filme pré-gravado de promessas vazias. Que a minha voz e a sua são desconectadas da natureza.

THEODOR: Natureza? Ele não entendia nada de política... Da arte de ser um performer cujo verdadeiro rosto não pode nunca ser visto... Vamos ser sinceros! Independente de aparência, idade, etnia e bandeira, o jogo é sempre o mesmo: entender as demandas do público e jogar com elas em proveito próprio. Se acharem que sua atuação foi boa, vão te eleger. A partir daí você precisa sustentar duas caras: uma para entregar pequenos resultados que mantenham o eleitorado aquecido e outra para os grandes acordos que mantenham a fisiologia saudável.

RANIÉRE: É uma boa definição. Mas o que você acha que Nick faria nas botas de um general?

THEODOR: Nada. Ele era inepto.

RANIÉRE: Eu teria dado a ele as chaves do palácio por 24 horas, só para ver o resultado.

THEODOR: Seria uma catástrofe.

RANIÉRE: Theodor, catástrofe maior é o que você está fazendo. Você rachou esse país ao ponto em que nosso povo não consegue mais se olhar nos olhos sem ódio e desconfiança. Todos só estão pensando nos próprios distritos. Em algumas décadas, teremos uma geração incapaz de viver em contato com o mundo exterior.

THEODOR: Eu prefiro um país seguro de si do que um país opressor obrigando as pessoas a darem as mãos por falsidade. Entenda de uma vez por todas, Raniére: Nosso povo não quer se unir. Precisamos respeitar os fatos e não os seus ideais românticos desconectados da realidade. O seu plano de governo é basicamente repressão. O ditador aqui é você. Eu sou um democrata, pois quero dar voz a cada um dos distritos individualmente.


Raniére faz uma pausa e escuta um trailer de filme que passa na TV da sala reservada:


"Power Tower- a história por trás do mito".


RANIÉRE: Eu não quero só poder. Eu quero justiça também.

THEODOR: E quem não quer?


Raniére faz outra pausa um pouco maior.


THEODOR: Tudo bem?

RANIÉRE: Sim, estou pensando... acho justo cumprir o último pedido de Nick.

THEODOR: Ir à zona de fronteira? Não tenho boas lembranças daquele lugar. Acesso difícil, mata fechada, pouca infra-estrutura...

RANIÉRE: Bem, queira você ou não, vou dar um jeito de conseguir um barco que me leve até lá.

THEODOR: Arrume o barco que eu arrumo a cremação. Amanhã de manhã faremos a cerimônia o mais cedo possível. A imprensa não pode desconfiar do nosso sumiço por muito tempo. Se souberem desse encontro vão fantasiar e espalhar fake news dizendo que agora somos aliados.


PARTE 21


A bordo do barco


RANIÉRE: Esse som é maravilhoso. Como eu queria enxergar... O que você vê? O azul é vibrante?

THEODOR: Não é tudo isso. Na verdade sinto um pouco de náusea da navegação.

RANIÉRE: Foi aqui que vi as últimas imagens antes de ficar cego.

THEODOR: Sério?

RANIÉRE: Sim. Eu estudava numa escola bem próxima da zona de fronteira. Dava para ver o mar da janela. O azul se tornava cintilante com o reflexo do sol naquela manhã de verão.

THEODOR: Este mar não me parece realmente nada demais.

RANIÉRE: Talvez por ter sido a última imagem que vi, eu a tenha cristalizado com especial afeto e amplificado seus tons.

THEODOR: Provavelmente. O que aconteceu nessa sua escola?

RANIÉRE: Estrondos. Os alunos correram para baixo das carteiras e tentaram se proteger das balas perdidas. Uma bala estilhaçou a janela da minha sala e passou de raspão pelos meus dois olhos de um jeito que me deixou cego.

THEODOR: Nossa. Achei que você fosse cego de nascença.

RANIÉRE: Teria sido melhor.

THEODOR: Você não sabe de onde veio a bala?

RANIÉRE: Levei os estilhaços a um especialista em balística. Por anos tentei achar quem teria disparado aquele tiro. Faltava pouco para achar o culpado. Descobri que era um cidadão do sul. Muitos militares do norte se compadeceram da minha situação e me ajudaram na busca. Meu sentimento de revolta era tanto que consegui influenciar uma mudança nas leis, o que me permitiu ser aceito no exército, mesmo com as limitações físicas. Eu tinha muita vontade de fazer justiça e percebi que a minha justiça se alinhava com a justiça do meu país: guerrear contra o sul.

THEODOR: E você procura o sujeito até hoje?

RANIÉRE: Esse tipo de gente merece a pior das vinganças: a calculada, a que leva anos para se concretizar.

THEODOR: Já passaram mais de 20 anos. O que falta para você apertar o gatilho?

RANIÉRE: O momento perfeito.

THEODOR: Talvez eu possa abrir uma exceção e facilitar seu acesso a esse soldado. Qual o nome dele?

RANIÉRE: Prefiro não dizer.


Raniére levanta com os cabelos esvoaçantes, saca a bengala e caminha até a beira do navio. Segura com a outra mão o corrimão metálico e sente o aroma do mar.


Theodor vai até o banheiro.


Liga a torneira e lava o rosto.


Lembra das caçadas juvenis com os colegas recém-alistados, quando iam para a zona de fronteira em busca de animais selvagens, querendo provar a masculinidade que ainda não tinham.


Numa dessas ocasiões, viu um pequeno felino.


Primeiro achou que fosse um gato (a escuridão e as poucas lanternas contribuíram para o equívoco).


Depois descobriu que se tratava na verdade de um tigre.


O animal ficava parado no alto de uma colina e o encarava de igual para igual, convicto, fulminante, inclassificável, fronteiriço, com um olho na cor verde, outro na cor amarela.


Aquilo o irritava de um jeito insuportável.


A cada nova caçada, o animal aparecia de novo, seguro de si.


Theodor disparou muitos tiros tentando acertar o felino no meio dos olhos, mas seu problema com o alcoolismo o fazia sempre errar a mira, e o tigre sempre saía vivo.


Muitas balas perdidas saíram de sua pistola.


Será que Raniére contratou este barco só para tirar a vida de Theodor num lugar isolado, sem segurança?


Theodor alisou seu coldre, verificou se a arma estava carregada e se preparou caso precisasse partir para o pior.


Não sem antes tirar do paletó uma garrafa de whisky e dar vários goles.


RANIÉRE: E então, vamos jogar as cinzas?

THEODOR: Sim, podemos orar também.

RANIÉRE: Devemos.

THEODOR: Deus misericordioso, nos perdoe por todos os nossos pecados intencionais e não intencionais (...)


PARTE 22


Ao longo do sermão, Raniére usa a fala de Theodor como guia para localizar a cabeça do inimigo. O general do sul permanece de olhos fechados e não percebe a investida.


Raniére espera a deixa do "amém" para dar o tiro de misericórdia.


O barco balança mais que o esperado, fazendo Raniére tropeçar e perder a mira.


Uma torrente de água açoita o rosto de Theodor na altura dos olhos.


O barqueiro retira da jaqueta um pano de alta absorção e cobre os olhos de Theodor. Pede para Raniére se segurar pois o mar encontra-se muito instável.


Raniére sente um vento forte nos olhos e tem a real impressão de conseguir ver o mar novamente, em riqueza de detalhes, como da última vez que enxergou.


Ele vê as cinzas de Nick que foram jogadas ao mar, formarem um redemoinho em reação de efervescência.


Então se ergue das águas uma versão transmutada de Nicholas: azul, gigantesco, extremamente forte e com uma ferida em formato de cruz na testa.


Raniére devora cada detalhe da cena, estupefato.


Nick encosta a falange do dedo indicador gigante primeiro na cabeça de Raniére e depois na de Theodor.


THEODOR: (fala embolada) Ele vai nos esmagar feito formigas! Quem é você Nicholas? Que porra é você?

RANIÉRE: Mostre-me quem você é de verdade. E eu me curvarei a ti.

THEODOR: Como assim? Você está vendo isso, Raniére?

RANIÉRE: Perfeitamente.

NICHOLAS: Eu tenho uma força absurda nas minhas mãos. Poderia destrui-los em segundos e solucionar um grande problema. Mas não o farei. Eu e a natureza agora somos um. E quero que vocês entendam do que estou falando. Vocês também merecem fazer parte disso.


Nicholas anda até as grandes colinas negras que cercam os mares da zona da fronteira.


Cada um de seus passos gera graves abalos sísmicos em todo o país.


Dá vários socos fortes nas rochas até esfarelar a montanha.


As colinas desmoronam e as águas dos dois países começam a se misturar.


Nick pega uma lasca de pedra da montanha e oferece a um tigre espectral de água.


A fera devora rapidamente, e quanto mais come, mais diminui de tamanho, voltando a parecer o felino das antigas caçadas de Theodor. Até que desaparece por completo, se diluindo na água.


Antes de mergulhar fundo no mar, Nicholas olha os dois generais nos olhos, seguro, inclassificável, fronteiriço e desafiador e diz:


"Integrem-se".



PARTE 23


Canal de jornalismo


"Hoje , pela primeira vez na história, Birrah passou por terremotos. O fenômeno afetou especialmente a zona de fronteira, removendo as montanhas que separavam o norte do sul e misturando as águas das duas regiões. Ainda não se sabe o que gerou tais perturbações".


Troca para outro canal de jornalismo


"Theodor e Raniére acabaram de selar o armistício. O tratado é um passo importante na reconciliação dos países. As fronteiras foram reabertas, a livre circulação está permitida e o embargo econômico está suspenso. Hoje foi um marco histórico".


Troca para canal de saúde e bem-estar


Programa matinal com uma professora de ginástica dançando. Na janela panorâmica do estúdio, um tanque de guerra recua e volta para os quartéis. A apresentadora para a dança, interrompe a programação e fica em silêncio contemplando cena.


Troca para canal de ciência


"O emulsificante é um produto capaz de unir duas substâncias opostas que não se dão muito bem em condições normais (...)"


Troca para canal de variedades.


"A seguir, uma entrevista com um oftalmologista sobre a recuperação da visão de Raniére".


Troca para canal de mundo animal


Documentário mostra a imagem congelada de um tigre olhando para a câmera.


Desliga a TV


Perplexa, a psicóloga olha a tela cinza da TV desligada por longos minutos.


Na vacuidade do que a razão não pode explicar, ela tem apenas uma certeza:


Nicholas se tornou maior do que foi.


E continua...


através dos outros.

FIM


🔌 Este texto surgiu da conexão de ways. Leia aqui!


































Posts recentes

Ver tudo
ancora blog
bottom of page