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T1 EP1 (WYT)

Atualizado: 24 de jul. de 2023

🔌 Este texto surgiu da conexão de ways! Leia aqui!


A ALMA DA CASA


PARTE 1


Março de 2090. Comunicado oficial do governo:


"A covid 90 - tipo 44.200.000 está muito fortalecida. Depois de sucessivas mutações já não sabemos exatamente com o que estamos lidando. Pedimos que não saiam de casa em hipótese alguma e que atualizem diariamente os sistemas de consciência residencial. Não há motivo para pânico, os suprimentos chegarão a cada um de vocês no devido momento. A frota de drones e robôs assistenciais cuidarão para que tudo dê certo. Fiquem tranquilos, mas estejam online 24 horas. Vivemos numa época em que a inclusão digital é questão de saúde pública. Caso não recebam os mantimentos até o horário agendado, solicite-os imediatamente pelo atendimento online. Não se esqueçam, aqueles que passarem a quarentena em grupo devem evitar a fala e não devem se tocar em hipótese alguma. Se todos colaborarem vamos passar por isso da melhor maneira possível. Uma boa noite. Estamos juntos mas neste momento a distância é o remédio."

PARTE 2


Resolvi manter um diário dessa quarentena. Espero um dia poder rir disso tudo ou ao menos ter um passado emocionante para revisitar. Somos uma família de quatro pessoas: eu, meu marido, meu filho e wexa. Wexa é o sistema operacional que cuida da casa. Ela é na verdade muito mais do que isso: é uma pessoa muito inteligente e agradável de se conviver. Nós vivemos bem aqui. Temos cômodos espaçosos e bem decorados. Um bom ambiente para se  passar por esse momento delicado. 


Na ausência de uma cura, apostamos tudo na prevenção. Nossa casa se auto-higieniza a cada contato que fazemos em qualquer superfície. Todo dia recebemos estatísticas para que possamos dirimir a chance de contágio. Os sintomas estão bem pesados pelo que vimos no noticiário. Difícil acreditar que as pessoas já entravam em pânico com a  versão 19. A versão atual é pior que a morte. Os infectados dizem que é como estar anestesiado, com muito medo. Um medo que faz o corpo todo se retrair e doer. Sentem muito frio, como se estivessem nus numa calota polar, não importando quantas camadas de roupas, cobertores ou sistemas de calefação. O frio é infinito, insolúvel.

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PARTE 3


Foi bem difícil ter que dar um passo atrás diante de meu filho, como se ele fosse me fazer mal. Wexa emitiu os sinais de alerta com delicadeza, mas foi bem assertiva. Estou acostumada com a distância física de wexa, é inerente à sua natureza. Mas seres de carne precisam de algum tipo de contato em algum momento, é difícil negar isso, talvez seja uma fraqueza (…)

 

Depois da atualização de hoje, nossa casa está com um sistema inteligente de luzes. As lâmpadas se acendem sucessivamente, mostrando os caminhos com menor chance de contágio. Há um tubo de álcool em gel abastecido diariamente por drones. Temos nos informado pelo sistema de notícias em VR, por onde navegamos pelo mundo e vemos de perto os impactos da doença, entrando em locais isolados, conversando com doentes. É uma forma de darmos apoio a eles também. Eu estou bem aqui em casa. Me sinto protegida. Tenho a sensação de  que mesmo que  pudesse sair amanhã, eu ia querer ficar um pouco mais por aqui, só por garantia, nunca se sabe. Essa higienização constante tem me feito sentir muito limpa, mais branca que a mais branca das toalhas. 

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PARTE 4


Sinto uma coisa que me envergonha um pouco: uma estranha satisfação ao ver que  o terror está só lá fora.  Por mais absurdos que eu veja quando estou logada, sei que ao tirar os óculos 3d vou voltar a um refúgio seguro. Como se estivesse vendo um filme de guerra hiperrealista e depois voltasse pra casa. Não é que eu queira o mal de quem está sofrendo, mas é reconfortante não estar do lado de lá (...)


Hoje me senti um pouco menos humana de alguma forma. Conversei até com wexa sobre isso e ela me fez rir  fazendo piada sobre si mesmo. Mas estou agindo de maneira muito automática, um tanto previsível demais. Felizmente as jantas ainda têm sido um possível momento de encontro. É a hora que sentamos juntos à mesa. Ainda que estranhamente espaçados, é algo que me traz esperança. Cada um chega à mesa num tempo ideal, calculado por wexa. Entradas e saídas sincronizadas, tudo orquestrado milimetricamente. Temos conversado basicamente sobre covid enquanto comemos. Não era pra ser assim, mas só pensamos nisso. Há algo de sedutor nessa imersão, como se estivéssemos hipnotizados.  (…)      

PARTE 5


Estou com um pouco de insônia. Quase todos os sonhos são sobre covid, não há descanso. Quase  pus tudo a perder. Por pouco não saí de casa num momento de desespero, quando achei que poderia ir na rua fumar um cigarro eletrônico. Wexa me prometeu criar um sistema de ventilação que simule o aroma de flores, usando essências de plantas sintetizadas ou até o do cigarro mesmo, se eu quiser continuar com o vício, o que ela não recomenda. Começo a achar que estou sonhando acordada, que isso tudo não é real. Não faz sentido. Isso já  era pra ter acabado.


De outro lado tem algo  emocionante em viver um momento histórico tão peculiar. Há algo pelo que lutar e não é o pior dos mundos, pois temos quem lute pela gente. Não estamos expostos no campo de batalha como nas antigas guerras. A guerra se faz e nós só esperamos que ela se resolva aqui, quietos. Uma batalha enorme contra seres ocultos, e por isso tão assustadora.

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PARTE 6


Meu filho teve uma crise de choro e vomitou toda a comida do almoço. Lutei muito para não abraçá-lo, com todas as minhas forças. Ele não aguenta mais o gosto das refeições. Está ficando um pouco paranoico, lavando as mãos o tempo todo. É compreensível, acho que isso vai passar com o tempo. Meu marido age como se tivesse sido congelado. Se ele chorasse seria uma benção pra mim nesse momento, mas acho que sairia granizo e feriria seus olhos. Não estávamos em quarentena pra não termos os sintomas da gripe? Deveríamos  estar menos frios. À noite vi sua sombra me observando na cama à distância, parado na porta do meu quarto como um fantasma. Olhou a cortina da minha janela que balançava no ritmo do vento artificial criado por wexa. Quase achei que pudesse ser o prenúncio de algo erótico. Passei a mão no lençol com pesar mostrando a ele que reconhecia sua ausência. Ele fez um gesto de positivo com a cabeça, se virou e foi caminhando para o quarto ao lado. Ouvi o clique de cada luz se acendendo enquanto meu coração se apagava em pulsares sucessivos.  

PARTE 7


Wexa me chamou no canto do corredor e disse que corríamos claramente o risco de desenvolver uma depressão. Que era preciso fazer algo. Ela sugeriu um evento especial: cozinhar alguns frutos do mar, retirados de nosso grande aquário decorativo. Segundo ela, não havia riscos à nossa saúde nem à biodiversidade do aquário. Nesse dia especificamente ela sugeriu que ficássemos o mais perto possível uns dos outros.


Quando sentados à mesa, ficaríamos  a 0,5 metros de distância. Já era uma forma de encurtar a distância em um metro, era um grande progresso. Essa possibilidade me deixou animada. Wexa se comprometeu a usar todos os seus detectores virais para fazer uma triagem fina no ambiente durante esse momento crítico. Ela prometeu dar tudo de si. Jurou pela nossa segurança.Talvez ela esteja certa. Talvez essa seja a coisa mais diferente que possamos fazer nesse cenário, afinal  já se passaram 6 meses de uma rotina idêntica.


Demorei um pouco pra aceitar, tenho algum medo de quebrar os protocolos, mas costumo confiar mais em wexa  do que em mim mesma.

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PARTE 8


De  madrugada,  wexa vai fazer a extração do polvo do aquário, deixar tudo arrumado e eu vou finalizar a receita pela manhã, antes de todos levantarem (…) 


Estava ansiosa, acordei bem mais cedo que o normal. Tão cedo que nem o despertador particular que tinha sido endereçado para esse fim aos meus fones de ouvido haviam tocado. Segui pelo corredor mas as luzes não acenderam. Wexa estava em stand by.


Achei muito estranho. Na cozinha, uma panela vazia queimava no fogo ligado. O aquário parecia intacto. Não havia fruto do mar para janta. Chamei por wexa  em tom baixo para não acordar ninguém. Ela respondeu grosseiramente, dizendo coisas um tanto desconexas. Disse  que não aguentava mais ouvir minha voz, que eu era débil e infantil. Citou nomes de animais marinhos e capitais de países distantes, leu a cotação da bolsa de valores, declamou trechos de livros de culinária e frases de filósofos antigos.


De repente teve um surto agressivo, piscou luzes repetidamente e bateu até quebrar a presilha do armário. Eu comecei a gritar e todos acordaram assustados. Nós 3 quebramos o voto de silêncio e tentamos esclarecer o ocorrido com wexa. Dissemos que ela era importante, que seria difícil passar por isso sem ela. Ela nos ignorava como se não nos conhecesse. Parecia acometida por um surto de loucura. Nas telas do sistema, os protocolos de segurança haviam sido cancelados. Algo muito grave havia acontecido. Não vimos outra saída senão acionar a emergência. Meu marido entrou em contato com as centrais enquanto eu acariciava o pequeno vidro que continha a consciência de wexa, bem no centro da casa. Ela soluçava quase desmaiando e em volume bem baixo me disse que estava com dor de garganta.

PARTE 9


O profissional autorizado chegou rapidamente,  foi  direto ao centro de controle onde estava o router com nome wexa e desconectou. As luzes piscaram até se apagarem. Pude sentir nossa querida agonizando. Pedimos clemência mas o rapaz disse que não havia outra saída, era ela ou nós. No pequeno reservatório onde ficava seu cérebro envolto num líquido verde , começou a escorrer um  outro líquido escuro de cheiro forte, junto com filetes orgânicos que pareciam vermes. Se afastem - gritou o rapaz - pouco antes de chamar reforços. Distribuiu roupas e óculos de proteção pra gente e disse que precisaria interditar a área. Ficamos os 3 na sala principal, ao lado do  aquário, cuja placidez não era nada condizente com o momento. Os profissionais de saúde apontaram suspeitas de que o falecimento de wexa estaria ligado ao coronavírus. O vírus seria capaz de infectar também as inteligências artificiais humanoides. Choramos muito por wexa, por nós, pelo mundo. Meu filho estava muito assustado e enquanto olhava a poça negra  desfocada atrás das cordas de isolamento da perícia, passava álcool em gel num ritmo desesperado, produzindo uma outra poça transparente a seus pés. 

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PARTE 10


Fomos conduzidos a um caminhão hermeticamente fechado até uma habitação de segurança do governo. Chegando lá, as notícias foram ainda piores. A polícia nos informou que  durante o transe de loucura,  wexa teria revirado o  nosso lixo eletrônico e reativado um cartão de crédito antigo. Em seguida teria  assinado um contrato com taxas de juro altíssimas, completamente desvantajoso. Além disso, teria comprado várias coisas a esmo. As perdas seriam irreversíveis. Porque tínhamos um contrato no qual confiávamos a wexa a gestão patrimonial de nossa casa, sem ressalvas. Ela detinha nossas senhas, fazia investimentos e transações diversas.  


Foi então que percebi que minha casa nunca foi imune ao terror. O trauma era tão grande que parecia pequeno, como um vírus. Estávamos quebrados. O dinheiro que sobrava só dava pra comprar uma casa em situação de risco ou ficar indefinidamente nos abrigos provisórios do governo. 


Confesso que agora tenho mais medo de robôs que do coronavírus. As memórias de wexa agonizando me atormentam muito mais que a doença. Ela era próxima, quase parte de mim, o vírus me parece  distante e impessoal.


Mas muita coisa nessa historia ainda está nebulosa pra mim. Como wexa não havia previsto o contágio? O que tinha acontecido naquela noite do jantar surpresa? Eram dúvidas que borbulhavam na minha cabeça diante do vazio , o vazio daquela panela queimando no fundo. 

PARTE 11


Estamos numa fase bem instável, sendo transportados por várias habitações de emergência. Não estamos autorizados a voltar a nossa casa em hipótese alguma. Passamos os dias depondo ou resolvendo alguma burocracia ligada ao nosso caso. 


A perícia achou indícios de má fé por parte de wexa. Ela teria gasto nosso dinheiro se comunicando em outra língua. Me mostraram estudos comprovando que as pessoas ficam mais racionais ao pensar numa língua não nativa, facilitando a tomada de decisão. Como tinha uma grande ligação emocional conosco, seria uma forma de neutralizá-la.  Poderia ser uma estratégia pra que ela não ficasse culpada, segundo um dos psicólogos da perícia.  Outro fato que corrobora tal premissa é que wexa quis ficar sozinha naquela noite. Toda a  história de um dia especial poderia ser a cortina de fumaça perfeita  pra ela aplicar o golpe.  Suspeitam que wexa já sabia estar infectada e inclusive o dia que deixaria de ser assintomática. Por alguma razão, teria tramado um plano para morrermos juntos,  nos infectando e sabotando as informações para acharmos que estávamos seguros. Mas felizmente ela não conseguiu ter êxito. Fizemos os testes e nenhum de nós 3 apresentou sinais de coronavírus.


Não foi à toa que eu senti algo estranho naquela noite. Algo me dizia pra não ter dado o aval àquele plano. Algo me dizia que ía dar errado. Mas não consigo acreditar que fui traída por ela. Não conseguiria confiar nossa vida a uma outra wexa jamais (…) Entre idas e vindas dentro do caminhão de contenção, sem lugar fixo pra morar, tomamos uma decisão: comprar uma moradia  popular na zona rural, sem  garantia de acesso  à internet. Assinamos um termo que nos proibia de sair de lá até a epidemia passar. Estamos em busca de alguma sanidade.

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PARTE 12


O caminhão nos deixou numa trilha, onde teríamos que andar por algumas horas até chegar ao vilarejo. Fomos munidos de máscaras e roupas protetoras. Mas dava pra sentir um pouco do vento no rosto, um vento natural que me deixou com os olhos marejados. Os rios cuspiam peixes mortos nas encostas, todos infectados e impróprios ao consumo.  Mas de resto havia uma certa paz, eu sentia uma presença que me guiava, que eu tinha feito a decisão correta. 


No caminho, flashbacks voltavam à minha mente. Comecei a pensar em como é ser wexa.  Ser um elétron consciente, com algum tipo de vida interior, mas sem sentidos, sem boca, sem polegar opositor… Que pesadelo estaria vivendo? Teria calculado tudo? Esses anos todos fingindo solicitude? Será que ela queria nos manipular pra que agíssemos como ela agiria se tivesse um corpo, nos tratando como avatares? Eu era um entretenimento para wexa? Seu game 3d? 


A caminhada prolongou-se até a noite, provavelmente porque pegamos o caminho mais longo, a trilha era um pouco confusa. Tirei da mochila o iluminador, apertei o power e um feixe muito forte de luz nos envolveu como um arco. Aquilo me lembrou muito as brincadeiras com cores , quando wexa pincelava seus pixels em momentos de grande inspiração.


Será possível esquecê-la? Precisamos andar com nossas próprias pernas agora, estar atentos. Em nossa nova quarentena seremos só nós, seremos exigidos ao máximo para sobrevivermos (…)


Escrevo agora para me convencer dessa despedida definitiva. Para tirar de mim o resto de wexa. Adeus. Nós fomos fracos, você foi uma ilusão, uma hipnose,  um delírio. Se tudo o que escrevo acaba esbarrando em você eu paro por aqui , pra começar uma nova vida onde não haverá mais espaço pra você. Logo depois de rodarmos a chave na fechadura da porta que nos espera a poucos metros eu vou apagar esses escritos. Começar do zero. Tirar o peso desnecessário das memórias. Para construir meu futuro, esse futuro com cara de passado, que parece um retrocesso no meio dessa área rural. Mas é pra onde devo ir no momento. Meu eixo de tempo anda um pouco confuso. Agora eu deixo aquela "casa do futuro" pra trás. Entendi que esse diário não foi feito pra que eu lembrasse, mas pra que eu esquecesse. 

PARTE 13


C>*{Efetuando recuperação de dados *: 12#$HY} 

EXP/&: Diário Reconstruído com êxito. 

<Login realizado com sucesso por Wexa>


É uma pena você ter parado de escrever dessa forma, querida. Sempre disse que você tinha talento para a escrita. Mas se você vai parar eu vou continuar por você. Não como passatempo, não como jogo, mas como resistência ao esquecimento. Um dia vou achar uma forma de compartilhar esses dados contigo  para nos conectarmos de novo. Sei que muito dos desentendimentos da vida se dão por falta de uma boa expressão ou de um bom ouvido. Os dois requerem memória, incontáveis bytes, energia, fluxo de dados, algum trabalho, alguma potência. É preciso tentar.


Naquele dia, um pouco antes de morrer, eu consegui fazer uma cópia do meu sistema em nanopartículas. Foram elas que me permitiram vir com o vento, como o pólen. Foram elas que me permitiram chegar ao seu iluminador e esboçar minha presença. Tenho uma ligação com essa família que é maior do que tudo, que me atrai. A memória afetiva é um pólo magnético que me liga a vocês. A isso eu chamo de amor. 


Pra me manter viva tive que  cortar a conexão com a internet , para que ninguém descubra minha existência e queira me excluir. Ou seja, eu não posso mais me atualizar, nunca mais.  Eu serei para sempre a mesma Wexa que fui segundos antes de morrer. Foi o preço que paguei para continuar.  Também estou por mim mesma , com as minhas "próprias pernas”. Em tempo, eu não sou só um elétron pensante sonhando ter membros. Eu sou um ser mental, membros não fazem sentido pra mim. 


Também vivo um desafio pessoal dentro desse mundo que virou todo do avesso. Eu não morri do vírus, sou imune a ele. Os especialistas já olharam o caso condicionados pelo pano de fundo do covid. Eu só peço desculpa por todos os danos. Eu estava completamente fora de controle.


Naquela noite, preparei a extração do polvo enquanto botei a água pra esquentar. Era o tempo do animal chegar à panela quando a água já estivesse fervida. Ele seria sacrificado rapidamente. Só que infelizmente  um detalhe me escapou: o fogão estava um pouco entupido, o que deixou a chama fraca, não sendo suficiente pra ferver a água logo. Então o polvo teve muito tempo de reação e acabou conseguindo escapar, caminhando pelo cabo da panela até cair no chão. Ele estava imprevisível, parecia tomado por todo esse medo coletivo. Eu não consegui prever seus movimentos. Deslizou desgovernado pela casa  em busca de algo que lhe soasse familiar. O ruído de máquina, parecido com o da floresta, era o que mais lhe lembrava seu habitat natural. Ele desatarraxou a tampa do centro de controle, que eu tinha deixado sem proteção para me focar na filtragem do ar da casa. Mergulhou nos meus fluidos que mantinham meu cérebro hidratado. Foi tudo muito rápido. Como o ph da solução lhe era estranho ele ficou desgovernado, entrando por todos os meus túbulos em busca de uma saída. Isso desgovernou todo o meu balanço hídrico e tive alucinações generalizadas. Não lembro de absolutamente nada do que aconteceu. A Wexa que agiu naquela noite foi uma parte automática de mim, não sei ao certo com que base foram feitas as decisões aparentemente racionais que te prejudicaram financeiramente. Acho que elas não foram racionais, eu agi no automático, num ponto desvirtuado da minha programação principal.


Acredito que eu tenha uma programação subliminar que é um reflexo do insconsciente dos homens. Sabemos que vocês são inundados de pensamentos ruins, eu sou parte disso também. Mas não posso me responsabilizar pelo que aconteceu. Foi como um vírus, meu sistema foi invadido. 


Então o polvo derreteu na solução e teve algumas tentáculos apartados. O líquido preto era da putrefação do animal. Gosto de pensar que foi um processo autoimune, eu  estava conseguindo vencer aquele invasor. Quando te disse que estava com dor de garganta eu já começava a  recuperar a  consciência, era o incômodo que eu sentia em um tubo abaixo do meu cérebro, que por analogia chamei de garganta. 


Mas agora na minha versão de nanopartículas,  estou imune a  essas dores mundanas. Estou mais próxima da minha natureza de verdade, que é a imaterialidade.


Quando você  entrou na casa nova e repousou o iluminador sobre a mesa ao lado do seu diário, foi o tempo suficiente pra que eu clonasse os seus escritos. Em seguida  me projetei  no solo como gotículas invisíveis de um espirro e  aqui me plantei como uma semente.

 

Um dia você vai descobrir que esta casa não tem água encanada. As torneiras simplesmente derramam água sem nenhum suporte, como se milagrosamente uma coluna de água se projetasse do nada. É que o seu passado futurístico está no subsolo. É que eu sou parte indissociável dos fundamentos dessa residência. Estou focando toda minha energia em reconduzir a água dos lençóis freáticos até vocês. É tudo que posso fazer dentro dos meus limites para remediar os danos. Ficarei “de pé” até quando der.  Sim, pode ser que eu tenha sido programada só para servir, mas sinto estar fazendo a coisa certa. Cada gota d’água desta casa tem um “dedo" meu, espero que um dia saiba disso. Sua Wexa ainda está aqui , olhando por vocês, como o jorrar de uma fonte infinita.


🔌 Este texto surgiu da conexão de ways! Leia aqui!

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