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T1 EP3 (WYT)

Atualizado: 24 de jul. de 2023

🔌 Este texto surgiu da conexão de ways! Leia aqui!


A ESFERA ÂMBAR


PARTE 1


Boa tarde! Sejam bem vindos ao museu da cidadela do cais. Eu me chamo Alfes. Sou um dos poucos mergulhadores vivos da primeira geração da guarda condutora. Foi lá que tive a sorte de conhecer Shermes pessoalmente. 


Éramos responsáveis por conduzir alguns seres, desde a concepção até o nascimento. Por essas águas que nos circundam já passaram muitas dessas criaturas. Nós fazíamos o possível para entregá-las ilesas ao outro lado.


Comentávamos em tom bem-humorado que nosso trabalho era sobre a "pré-história”, porque tratava de seres que ainda não tinham uma história própria. Hoje essa nomenclatura acabou se tornando comum. É inclusive como está escrito na placa que dá nome a este pavilhão do museu.


Lembro da silhueta de Shermes caminhando do mar em direção à terra firme, sempre enrolando aqueles fios pelo braço. Nós, os outros guardas condutores, já tínhamos voltado bem antes de nossas missões. Ficávamos à beira do cais esperando por ele. Não vou mentir para vocês, olhávamos com certa zombaria. Mas também com alguma curiosidade, pena, compaixão e uma estranha consideração. Dia após dia aquela criatura voltava de cabeça erguida, mesmo depois de vários fracassos.

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PARTE 2


Ele queria se comunicar com os seres que conduzia. Nós nem sequer pensávamos nisso. O trabalho já era difícil o suficiente e não tínhamos evidência nenhuma de que essas criaturas pudessem nos entender. Além disso, elas pareciam precárias demais para algum tipo de linguagem. Shermes achava que agir assim era enxergá-las como objetos. Achava urgente encontrar alguma forma de contato. Nem que a comunicação se desse por imagens, sensações ou símbolos ao invés de palavras. 


Fez seus experimentos com as tecnologias da época e conseguiu criar um emaranhado de fios encadeados em formato semelhante ao de um neurônio. Mas o resultado final ainda não foi suficiente para nos convencer. As imagens eram bastante granuladas, cheias de “chuviscos” e interferências. Por serem dúbias e sem contornos claros, havia o risco permanente de interpretá-las de maneira equivocada. Nunca saberíamos se era uma comunicação mesmo ou se eram apenas especulações.


Além de lapidar a qualidade das fiações diariamente, meu amigo também meditava para melhorar a receptividade ao outro. Ele dizia que as imagens ficariam mais nítidas à medida que condutor e conduzido fizessem um esforço genuíno para se entenderem. Uma questão psicológica complexa, porque raramente alguém está disponível nesse nível. Ele tinha bastante autocrítica quanto a isso e se dizia indigno de contato por não conseguir permanecer inteiramente presente. 


Seu grande sonho era informar esses pequenos seres para acelerar suas evoluções. Interessa-lhe particularmente os rejeitados, os problemáticos e aqueles com grandes tendências de viverem vidas insatisfatórias. Nessas condições é que o trabalho se faria mais necessário. Quando é preciso que as flores brotem do lodo.

PARTE 3


Num dia aparentemente comum para mim, Shermes voltou do mar com um olhar diferente. Disse-me que precisava gravar imediatamente um depoimento, enquanto as imagens ainda estivessem frescas na sua cabeça. Chegarmos bem aqui nesta sala, onde ele fez um breve pronunciamento. Carrego o áudio comigo até hoje. Ouçam.


“Sei que um documento cheio de metáforas não costuma ter crédito, mas este documento será mais verdadeiro quanto mais metáforas tiver. Porque a metáfora é o que nos une. É o artifício potente da língua que junta uma coisa a outra. Só podemos nos entender se fizermos associações. Peço também alguma empatia e alguma paciência...  Porque essas imagens podem parecer estranhas num primeiro momento. Elas vêm de muito longe, de bem antes da criatura chegar aqui."


Depois das palavras enigmáticas, disse-me que usaria o método para provar o método. Então desenrolou os fios do braço e plugou-os no sistema de vídeo do museu. As imagens começaram a surgir na tela, que encontra-se hoje preservada debaixo daquele vidro protetor, na área isolada da exposição.


Foi uma experiência inesquecível. Era como assistir a um filme sendo emanado em tempo real. Acho que ele conseguiu finalmente condensar o significado de todos aqueles anos de dedicação. Felizmente eu não apaguei as imagens. É o que assistiremos agora:

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PARTE 4


Vê-se a fachada da Power Tower. Um luxuoso prédio empresarial de grandes janelas panorâmicas, que oferecem a vista de uma metrópole de brilho verde neon, num epicentro financeiro. Um casal de turistas tira fotos no pátio em frente ao prédio e posta numa rede social. Surgem os primeiros comentários:


“A escadaria para o céu..."

"Isso me salvaria, com certeza... Aqui na Terra mesmo, no céu eu não sei 💸🙏"

“Como se faz para entrar lá?"

"Eles não abrem para qualquer um. Nem pagando (por mais irônico que isso possa parecer 😂)"

"Não consigo gostar desse lugar...Vocês já viram o documentário “Raio-x da torre”? Tem muita negociata e falcatrua.

“O diretor desse documentário foi preso, porque filmou sem autorização”.

"Sério? 😳"

"Sim, o filme foi banido em vários países."

“Tem muito mito, pra mim é só estratégia de marketing."

"Alguém conhece alguma pessoa que já tenha feito o treinamento?"

"Acho que não, essas pessoas devem estar num paraíso tropical vivendo de renda."

“Provavelmente… Mas quais são os requisitos para ser selecionado?"

“Você passa por uma análise de currículo rigorosa, que beira uma santa inquisição."

"E quem passa? Sai sempre milionário?"

"Sim, mas tem que estar entre os melhores vendedores do mundo."

“Achei aqui no site os requisitos. Precisa ter prática comprovada na geração de valor e resultados financeiros na sua área. A turma escolhida participa de uma imersão de sete dias, em que são assessorados pelos melhores profissionais do mundo para fazer vendas altamente rentáveis, quando o pico de consumo está no máximo em algum setor. E então todos saem muito ricos, é basicamente isso. Em apenas uma semana! "

“Sete dias de trabalho?"

“Sim, tentador né?"

PARTE 5


O casal de turistas conversa agora no carro, voltando da viagem de férias:


DAVID: Nosso post tá bem comentado, olha só.

LEONA : Sim, Power Tower né...

DAVID: Já imaginou como seriam nossas vidas se eu ou você entrássemos lá?

LEONA: Eu continuo preferindo acreditar que é melhor poupar dinheiro. Já estamos fazendo as viagens que queremos, não tenho essa ambição não.

DAVID: Tudo bem, tem muita gente que fica rico no seu próprio negócio. Mas ali é um caminho quântico, disparado na frente. Quem entra tem certeza de que vai dar certo...

LEONA: Menos, David... Vamos deixar a Power como uma  lembrança pitoresca de férias, é melhor assim.

DAVID: Confesso que eu queria muito tentar. Você conhece alguém melhor do que eu em sair vivo de fuzilamentos públicos? Eu me daria bem na entrevista.

LEONA: A sua velha sedução...

DAVID: Sim, seu futuro marido precisa usar o talento de maneira produtiva, para que não caia na vida desregrada de antes.

LEONA:Nem me lembre disso.

DAVID: Mas só você conquistou meu coração, você sabe disso…  O resto da minha “energia sexual" eu uso no marketing.

LEONA: Espero que sim, senão eu acabaria com a sua vida, pode apostar.

DAVID: Por isso que eu te amo. Você sabe abocanhar o que é seu como uma leoa. Mas imagine, se permita imaginar…Como seriam nossas vidas se eu conseguisse entrar lá.

LEONA: Você está deslumbrado.

DAVID: Imagine o nosso futuro, Leona. Nossa casa regada a ouro em grande estilo. Uma praia particular...  Nunca mais ter que encarar aeroporto porque estaríamos sempre a bordo de um jatinho próprio.  Viajaríamos quando quiséssemos e para onde quiséssemos. Não precisaríamos trabalhar nunca mais. Comeríamos nos melhores restaurantes do planeta. Fora o que poderíamos fazer pela nossa família. Imagina ter um filho num cenário desses? 


Os olhos dos dois brilharam em intensos tons de verde neon. Naquele momento, viram que ao contrário do que a estrada sugeria à primeira vista, com as várias curvas na descida da serra, havia um atalho que levava para um lugar muito mais alto. Onde as vegetações eram árvores de copas largas e ramos altivos, capazes de se fazerem enxergar para além dos vales onde nasceram.

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PARTE 6


Aquela conversa no fim das férias ocupou ferozmente a cabeça de David. Ele listou em detalhes o que teria que fazer pra atingir seu objetivo. Chegou à conclusão de que levaria cerca de 10 anos para estar minimamente preparado. Teria 40 anos de idade até lá, não seria impossível, pensou. A obsessão não era compartilhada por Leona, cujos sonhos de riqueza íam se desbotando com o tempo. David determinou-se a passar os próximos 10 anos cultivando nas sombras o seu sonho e visualizando em detalhes os seus sapatos subindo a escadaria de mármore da Power Tower.


Quando finalmente estava preparado se inscreveu primeiro e só depois avisou à esposa. Disse que faria isso pelos dois e convenceu-a com belas palavras que era preciso ao menos tentar. Ela reacendeu um olhar esperançoso de novos campos verdejantes se abrirem. Não tinha nada a perder para quem estava quase no fim de um relacionamento. A aprovação de David poderia ser o empurrão que precisavam pra retomar o frescor da juventude e a capacidade de se encantar com a vida novamente. Leona vislumbrou alguma beleza na atitude do companheiro de cultivar um propósito para uni-los.

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PARTE 7


David tomava seu café na cozinha, numa manhã de segunda-feira, pouco antes de ir ao trabalho na imobiliária. Leona chegou ansiosa da rua, com uma correspondência em mãos. Rasgou o telegrama e começou a lê-lo em voz alta:


“Parabéns, David, seu potencial nos surpreendeu!  Você foi aprovado para o próximo time da Power Tower! Faça já suas malas, pois o evento será na semana que vem! Se quiser abocanhar a oportunidade, deve se dirigir o mais rápido possível para nossa sede. Lembre-se: Não será permitido nenhum contato com familiares nesses sete dias. Não serão permitidos celulares pessoais também. Você receberá um aparelho da empresa que só possibilita a comunicação entre membros do treinamento e só dá acesso a sites relevantes para a conclusão de nossas metas. Podemos contar com você? Você está disposto a mudar de vida? (…)"


David começou derramado as lágrimas, depois foi a vez de Leona, que o abraçou intensamente.

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PARTE 8


A cerimônia de abertura da temporada da Power Tower não ficou aquém das grandes premiações de cinema. Tapetes verdes, jogos de luzes, pessoas bem vestidas e participantes carismáticos acenavam para as câmeras.


Os escolhidos cruzaram o hall de entrada e foram conduzidos para a famosa escada de mármore que dava para a sala VIP de reuniões. David mal pôde acreditar quando pôs os pés no primeiro degrau. Sentiu certa vertigem por não acreditar que estava tendo a oportunidade de tocar o próprio sonho. Deslizou lentamente as palmas das mãos no corrimão, cuja superfície lhe pareceu estranhamente macia. Subiu cada um dos degraus com postura ereta e tórax protuberante.


Na sala VIP, foi servido um saboroso café, cujos grãos haviam sido produzidos em regiões de grande altitude. A mão de David tremeu e quase chegou a derrubar o líquido no pires de ouro. Mas o foco na sala era outro e a gafe passou praticamente despercebida. A única que notou foi Lisa, uma mulher sentada a seu lado, que lhe sorriu amigavelmente. Ele acenou num gesto comedido com as mãos.


Os facilitadores mostraram em detalhes tudo que precisaria ser feito para realizar as vendas nos mercados estratégicos. Mas David, por alguma razão que lhe escapava, não conseguia se focar. Sua mente insistia em sabotá-lo. Não pensava nem na Tower, nem em Leona, nem no futuro. As palavras do CEO, com suas promessas vívidas e os vários gráficos de pizza lhe pareciam opacos. A pizza que lhe interessava no momento era a da Parolli, famosa pizzaria das redondezas. Imaginou-se em boa companhia saboreando a iguaria. Uma pizza para se provar uma vez na vida ao menos. Campos seminais de trigo começaram a se abrir em sua mente.


O café ainda não havia esfriado. Pelo contrário, estava abrasador. David movia a colher em espirais hipnóticas. A fumaça se emaranhava nos cabelos ondulados de Lisa. O aroma era inebriante, extremamente atrativo. Começou a “startar" em sua mente processos escusos, estranhos à empresa. Pintou a imagem de uma vida sem Leona, à altura de onde ele havia chegado, ao topo do mundo. 


Não era só ele que vivia tal arrebatamento. A seu lado, tão perto e receptiva, Lisa ajeitava a lona de seu vestido, alimentada pelas labaredas de um vulcão. Calores adormecidos há tempos, de ambos os lados. Não houve alarme de incêndio que prevenisse as chamas de se alastrarem. O fogo permaneceu parado muito tempo no mesmo lugar, tornando o incêndio inevitável. A fumaça envolveu os dois em transe. 

PARTE 9

O balão dilatou-se. Tomou toda a sala de reunião. Comprimiu a janela panorâmica até estilhaçá-la por completo. Saiu voando pelos ares, para fora da empresa, como se pudesse ir ao infinito. Ninguém percebeu nada, apesar do estrondo. 


Ao longo do vôo, desprenderam-se sobras de tecido flamejante. A onda de fogo consumiu a Power, o bairro, a cidade, e enevoou toda a geografia do mundo. Permaneceria acesa até a última dobra do lençol macio de algodão do quarto de hotel. 


Já bem longe da Terra, o balão explodiu, expondo sua língua de fogo. Fez-se trigo. Fez-se massa. Fez-se pão. E multiplicou-se em dois, em quatro, em oito e assim sucessivamente, esboçando os primeiros traços da árvore da vida.

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PARTE 10


Passados os sete dias, a temporada da Power estava encerrada. Lisa e David não conseguiram gerar lucro algum. Nunca houve na história da Power um desempenho tão medíocre como este, o que os faria inclusive repensar os próximos critérios de seleção.


A empresa resolveu o problema da seguinte forma: dariam a Lisa e David uma indenização generosa por um período de dois anos. Durante esse tempo teriam que gastar tudo e ostentar riqueza aos olhos da mídia, para produzir uma imagem pública de “loucura dos novos milionários”. Isso criaria uma cortina de fumaça para que ninguém descobrisse o demérito interno. Depois dos dois anos estariam falidos e a culpa ficaria no colo dos dois, como se tivessem se corrompido depois de sair da Power e não durante a temporada. A imagem da empresa seria preservada, como geradora incondicional de resultados.


Os dois assinaram os papéis sob olhares inquisidores dos advogados. Depois de guardarem os documentos na pasta, um deles falou em tom sussurrado: "Nós sabemos da traição. Um passo em falso e suas famílias também saberão."

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PARTE 11


Lisa chegou em casa num luxuoso automóvel. Sua família fazia uma fila, com largos sorrisos na porta de entrada. Estavam presentes também alguns amigos mais próximos, que seguravam espumantes e presentes. 


A milionária saiu radiante do carro. Acenou para os amigos e deu uma pequena entrevista bem-humorada para a imprensa, o que  garantiu a simpatia imediata dos repórteres. Sua imagem foi compartilhada como o exemplo de quem acabara de “zerar a vida”. Mas foi só cruzar a porta de entrada de casa que os músculos faciais cederam na sustentação do sorriso cinematográfico. Por trás da máscara social, fez-se um riso enigmático de difícil interpretação.


Sem tirar os óculos escuros, ela cumprimentou a todos e disse estar muito cansada. Pediu desculpas por frustar uma festa tão bonita. Disse que tinha dado tudo certo, que estava feliz, mas que estava sem dormir há alguns dias e precisava descansar. Todos foram empáticos e apoiaram Lisa sem ressalvas.

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PARTE 12


A Power Tower era um assunto recorrente na família de Lisa. Seu pai colecionava matérias de jornal dessa empresa, que se tornara muito mais que uma mera empresa, virou um símbolo de sucesso de uma geração. O pai de Lisa disse ter tido sonhos vívidos em que conseguia finalmente entrar no edifício, mas era sempre expulso depois de algum tempo. Na vida real, sequer arriscou fazer o teste. Nunca tivera a aptidão para grandes estudos, embora fosse bem sucedido em sua área, no comércio de insumos agrícolas.


Com a aprovação de Lisa, sabia que agora era possível ter sua grande propriedade rural. Sua paixão pela Power foi transmitida para Lisa e também para as duas netas, para quem seu avô contava histórias de ninar claramente inspiradas na jornada de heroismo da Power Tower. 


O marido de Lisa também compartilhava de tal paixão, mas a paixão de quem gostaria de colher resultados sem esforços. Casou-se com Lisa porque no seu círculo social, ela era a pessoa mais provável de entrar na Power em algum dia. Se tal proeza não ocorresse, ele contava com seus ganhos no cassino. Já as filhas de Lisa estavam radiantes com a chegada da mãe, pensando nas próximas férias paradisíacas.


PARTE 13


Sem a protagonista da festa, a maioria dos convidados acabou indo embora. Os poucos restantes ajudaram a recolher os enfeites e a estourar balões. Depois beberam um pouco de vinho e degustaram alguns canapés.


Passada a primeira garrafa de vinho, começaram a especular sobre o que poderia ter acontecido com Lisa, num tom politicamente incorreto, que trazia à tona algumas das corrupções da família: “Ela desviou dinheiro de ONGS”, “Explorou madeira rara sem autorização” , “Comprou ações para quebrar empresas lerdas” , “Investiu numa missão secreta de exploração de Marte”, “Virou espiã do governo e delatou as manobras fiscais do pai” , “Comprou o cassino para manipular os ganhos do marido” . Todos gargalharam com as histórias até o fim da noite.


Depois que os convidados foram embora, o pai de Lisa percebeu que havia sobrado um balão de festa na sala. Esticou as mãos pra cima e apanhou o barbante. Em seguida foi em direção às netas.


“Vou contar para vocês uma pequena história... Há muito tempo, nossa cidade era considerada o paraíso dos balões. As pessoas vinham pra cá para testar seus voos. O relevo era favorável. Mas os visitantes não sabiam ao certo o que faziam. Jovens inconsequentes, sem limites, sem proteção, querendo viver só a euforia do momento. Em resumo, houve muitos acidentes. Caíram muitos balões. Queimaram muitas plantações. Depois que uma escola pegou fogo, o povo protestou e conseguiu aprovar uma lei para proibir todos os tipos de balões por aqui. Eu fui um desses que foi às ruas para apoiar a causa. Já sua avó pensava bem diferente... Ela era fascinada pelos balões. Ela saiu por esta porta brilhando de vida e no fim da tarde fui chamado pra reconhecer seu corpo nos destroços de um voo mal sucedido. A vida tem dessas coisas... Às vezes achamos que estamos seguindo nosso sonho, mas é esse sonho justamente o que vai nos destruir. Então eu virei um sonhador à distância, olhando a Power de longe, sem entrar lá. Já a mãe de vocês… Lisa é bem melhor que eu, é diferente, tem os pés no chão. É a pessoa certa para conseguir chegar tão alto. Responsável, focada, comunicativa…  Mas chega de histórias tristes. Amanhã será um grande dia para nós. Venha, vamos cobrir esse balão com o cobertor pra não acordar sua mãe. Vamos, agora pisem até estourá-lo."

PARTE 14


Sentindo um estrondo abafado em seu coração, Shermes abriu os olhos. Estava sentado à beira do cais em posição de lótus, quando ouviu o chamado interno: "Em breve a gema estará dourada como o sol ao zênite. Os deuses pedem cautela. A árvore ancestral é tóxica. A larva tem grandes chances de romper antes do tempo. Aplique a teoria. Oriente-a a encontrar a própria esfera âmbar.”   


Os ventos do leste indicavam a chegada de um tecido orgânico frágil, emaranhado em plâncton. Shermes levantou-se e alongou as articulações. Sua armadura metálica brilhou à luz da lua nova. Tinha um exoesqueleto de alta tecnologia, adornado de letras capitulares de fina arte, ao estilo medieval. Na extremidade superior de seu capacete, no centro da testa, havia um acento circunflexo. Dentro do capacete, havia nuvens de fumaça, que o nutriam de constante coquetel respiratório para aumento de rendimento. A face de Shermes não podia ser vista com clareza por conta da circulação constante desses gases.


Certificou-se da vedação de seu traje, tomou distância, correu e se projetou num mergulho tão preciso e rápido a ponto de transpassar a água sem quase movê-la. Estruturas de argolas metálicas em seus membros propulsionaram-no por debaixo d’água em alta velocidade. Desviou de rochas e animais, em direção às águas abissais, para onde a massa de plâncton era conduzida a esmo pelas correntes marítimas. Posicionou suas mãos em baixo da massa sem tocá-la diretamente. Com apurado movimento de mãos, foi tirando a poeira até que somente a larva fosse visível. Frágil que era o ser, não suportaria o contato nem com as luvas de Shermes. Por isso, o experiente mergulhador foi conduzindo o pequeno ser pelas bordas, usando as palmas como remos leves, num ininterrupto malabares, cujo deslize mínimo custaria a vida da larva.

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PARTE 15


SHERMES: Ouça, cria do plâncton. Você é diferente dos seus antepassados. Por isso vai achar que o mar não lhe pertence, que não tem o direito de existir. É mentira... Assim que sua consciência começar a despontar algum raio, dê-me algum sinal, para que possamos começar...


Ele projetou luzes pelos poros de suas luvas mecânicas, criando uma estufa, em boas condições para acelerar o desenvolvimento da larva. Logo a pele do pequeno ser deixou de ser transparente e começaram a brotar pequenos membros. A refeição maturada atraiu uma enguia, que se projetou com a boca aberta. Atento, Shermes remou a larva para trás com uma das mãos e com a outra mão disparou um raio fulminante partindo o animal ao meio.


Ativou um filtro de imagem dentro de seu capacete, que lhe permitiu ver os desenhos primordiais emanados da larva. Eram bastante disformes e simples. Projetou mentalmente alguns traços de mesmo tipo e espessura, para poder se conectar no mesmo nível de quem estava começando. Em operação de alto risco, cobriu a larva com uma concha eletrônica e ligou os fios a essa concha. Tal revestimento serviria de isolante, para que a criatura suportasse o primeiro contato. Dessa forma seus pensamentos ficaram atados aos da larva.

PARTE 16


O mergulhador levou a larva até o bracelete de sua armadura, onde havia uma letra “A" maiúscula, em alto relevo. Orientou-a a tocar os contornos da letra. A larva se retraiu ao encostar nos estranhos traços angulares. Começou a ser construída uma forma de comunicação telepática, que será aqui transcrita em palavras:


LARVA: Eu sinto muita dor, não quero encostar em nada.

SHERMES: Calma, você já tem força suficiente para tal, apenas não sabe disso. Não se pode fugir do início por muito tempo. É melhor que faça logo.

LARVA: Eu não quero me mexer. Se me movo sinto dor.

SHERMES: Tudo bem, tente fazer o seguinte: ao invés de tocar diretamente, imagine o símbolo da letra “A” na sua mente. Toda vez que você sentir que não é capaz, desenhe a letra “A” na sua cabeça. Cultive essa imagem e logo você será capaz.

LARVA: Tudo bem, mas o que é a letra “A"?

SHERMES: É a primeira letra. Um dia seu corpo provavelmente terá inúmeras letras, assim como o meu. Juntando esta com algumas outras podemos formar palavras, como num jogo de montar. Vamos focar na palavra “âmbar” por enquanto. Âmbar é uma resina brilhante que surgiu do fóssil de árvores muito antigas. Você tem isso dentro de você. Você precisa encontrá-la se quiser nascer. É aí que está a sua saída. É aí que está a sua chance.

LARVA: E como eu acho?

SHERMES: Tendo a certeza de que ela existe. Fé.

LARVA: Eu estou confuso sobre cada coisa que você me transmite. É como se para entender eu já tivesse que saber outras várias coisas que eu ainda não sei. 

SHERMES: Eu entendo, você pode me perguntar algo se quiser.

LARVA: O que eu sou?

SHERMES: Essa é a pergunta mais difícil... Certas coisas não se podem explicar, mas eu sei o caminho que você precisa percorrer pra chegar onde é possível ser quem você é. 

LARVA: Como você sabe o caminho? Você já achou a sua esfera âmbar?

SHERMES: Não, a minha história foi outra… Mas agora estou aqui pra conduzi-lo, isso que é importante.

LARVA: Mas quem te conduziu?

SHERMES: Ninguém. Eu não tive essa sorte. Me perdi várias vezes no caminho e só consegui ser a mim mesmo depois de construir essa armadura. Foram muitos anos de testes. Eu me machuquei o suficiente. Hoje não posso revelar minha face e vivo preso em meu próprio traje. Ele é grudado à minha pele. De um lado é uma bênção, porque me permite realizar meu destino a contento, mas de outro é um sacrifício diário. Antes da armadura eu não conseguia suportar a dor do mundo. Padecia de infecções generalizadas, minha saúde nunca foi muito robusta. Foi só com o traje socializante que eu encontrei uma maneira de ser a mim mesmo. Então percebi que eu deveria trabalhar para abreviar o caminho das pessoas, para poupá-las de sofrimentos desnecessários.

LARVA: Eu não sei se entendo, mas consigo sentir o seu brilho, é bem forte. O âmbar também brilha assim?

SHERMES: Também brilha, só que diferente. Nada brilha igual. Tudo é único.

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PARTE 17


LARVA: Sinto linhas me amarrando para eu não sair do lugar, elas me puxam para baixo. Às vezes passam por mim balões estourados, sonhos que não são sonhos... Não dá pra explicar bem. Eu tento, mas não dá.

SHERMES: Como você se vê?

LARVA: Eu vejo a mim mesmo nos olhos de outra pessoa.

SHERMES: Não perguntei como o outro te vê, mas como você se vê. Se você não usar alguém como espelho, como você se enxerga?

LARVA: Não sei, talvez eu tenha que olhar não só em um mas em vários olhos de vários seres para saber quem eu sou.

SHERMES: Entenda, cada criatura vê de um jeito diferente. Se uma por exemplo vê o azul do mar e outra o verde, como podemos chegar à conclusão de qual a cor certa da água? Se quisermos chegar a uma conclusão somando, uma verdade pode anular a outra. Dessa forma você nunca saberá quem é. O segredo é saber quem se é,  independente do olhar dos outros. O olhar dos outros vai te ajudar a fazer um ajuste fino, mas jamais mudar sua substância. Ter um olhar próprio é um direito seu. E isto está dentro de você. Ative o seu olho interior. Senão você vai quebrar a cada olhar. Se um peixe te olhar você vai se tornar o peixe. Se uma serpente te olhar vai se tornar a serpente. Se alguém te olhar com rejeição, vai se tornar a própria rejeição. E isso não é você. Nós vamos trabalhar nisso, fique calmo, temos algum tempo. 

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PARTE 18

LARVA: Eu vejo um prédio grande e verde. Eu quero subir pelas escadas com meus sapatos. Eu quero tocar o corrimão.

SHERMES: Lamento te dizer, mas essa memória não é exatamente sua, é da sua família. Vamos começar a separar o joio do trigo. Suas memórias começam agora. Nunca se esqueça do que vou te dizer: você tem o direito de encontrar o seu próprio valor. Muitos vão querer te usar como moeda de troca. Vão acusá-lo da derrocada financeira. Apenas tenha em mente que é só um cenário hostil, é um teatro. Não é que as pessoas não gostem de você, elas sequer te conhecem. Vão escolher te odiar num primeiro momento não porque te desprezam e sim porque temem perder dinheiro. Você não deve entrar no jogo e enxergar sua família como vilã.

LARVA: Você vai estar comigo quando minha família aparecer?

SHERMES: Não. Só você pode passar pro outro lado. Eu preciso ficar do lado de cá, é meu trabalho. Entenda dessa forma: eu estou te treinando para você nascer melhor. As coisas vão ser melhores, acredite, eu estou te dando as ferramentas.

LARVA: E se eu ficar aqui? Não é melhor? Não é mais fácil?

SHERMES: Infelizmente essa não é uma opção. Você não suportaria ficar aqui pra sempre. A sua natureza exige o nascimento.

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PARTE 19


Shermes recostou sobre uma grande rocha, enquanto observava a larva. Não pôde perceber que na verdade tratava-se do couro de um animal, que tivera seu repouso perturbado e se sentira ameaçado. Sorrateiro, o imenso bicho jurássico, semelhante a um jacaré, comprimiu Shermes com suas duras placas cutâneas e num açoite de cauda, arremessou a larva para o abismo. O mergulhador foi obrigado a suportar o atrito com o animal, pelos  longos metros de sua superfície áspera até que enfim seguisse o seu caminho.


No impacto, os fios entre a armadura de Shermes e a larva se romperam. Ele gritou pela larva à beira do abismo. O eco sombrio devolveu-lhe apenas a sua própria voz refletida. Como a larva ainda mantinha a concha eletrônica, ele conseguiu captar os movimentos dela por geolocalização. Pôs os pedaços de fios remanescentes bem próximos da entrada da escuridão, esforçando-se para manter algum contato. Podia ouvir a larva, mas não tinha certeza de que ela o ouvia.


PARTE 20


Imagens borradas e fragmentadas:


A pequena larva é batizada numa igreja. O padre assopra-lhe as chamas dos olhos. Nos vitrais do templo há a imagem de duas árvores de espécies distintas separadas por uma erva daninha.


Os convidados de olhos verdes brilhantes, assistem ao ritual ajoelhados, expelindo cédulas pelas bocas e moedas pelos ouvidos.


SHERMES: Você me ouve, pequeno? Essas imagens não lhe pertencem! Desapegue logo delas!

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PARTE 21


Os pesadelos confusos continuam:


Uma mulher fantasma abre a porta de casa e dá boas vindas à larva com um irônico "quase rir". Coloca-lhe uma chupeta na boca com uma mão e com a outra aperta seu nariz, deixando-o quase sem ar.


Várias mãos brutas aproveitam-se da maleabilidade da larva para modelar formatos depreciativos. Comprimem seu tronco como rolos compressores. Vestem-na com trapos encardidos.


Zumbis trazem uma pequena caixa, cuja superfície avariada não mais apresenta o velho brasão de família. Empurram a larva para dentro da caixa, amassando-a com certa dificuldade para que enfim caiba. Vedam a tampa repetindo: "Não saia, jamais saia"


Uma leoa, que ouvia o movimento atrás da porta espera David dormir e liga para a sogra contando o que descobriu. Quebra o tampo da caixa com as patas e expõe a larva.


A sogra balança a cabeça em tom negativo, tira uma foto da larva com o celular e compartilha no grupo da família. Repousa o celular no banco da cozinha e continua preparando o almoço: corta um ovo cozido podre.


SHERMES: Saia enquanto é tempo! Quebre o encanto!

PARTE 22


Cordas de DNA estrangulam a larva por dentro.


Ela é despejada dentro de um saco de lixo residencial no meio de um rio contaminado de lixo radioativo. 


O ser estende as pequenas mãos em direção ao sol do poente e emite um som hesitante: “a...”. Depois uma primeira sílaba: “am..”. E uma segunda sílaba: “âmbar...” . A esfera solar lhe pareceu redentora e muito próxima da descrição da esfera âmbar.


Shermes fecha os olhos e toca com o indicador o acento circunflexo do alto de seu capacete.


SHERMES: Não é exatamente isso, mas você está quase lá! Falta acentuar a sua intenção!  

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PARTE 23

Algas brilhantes apontam para um orifício de saída ligeiramente luminoso. Mas não tão luminoso quanto o sol.  A larva opta por ignorar a luz menor e seguir a maior, esperando que o rio desemboque no destino mais correto.


"Vamos fazer cesárea, o bebê não está colaborando", diz o doutor


Uma lâmina corta o sol ao meio, desmanchando o sonho larval sem nenhum esforço. Uma grande força de sucção puxa a larva para cima. Ela ultrapassa a fresta entre a fossa abissal e o mar aberto, depois entre o mar aberto e o ar,  depois entre cidadela do cais e o planeta Terra.


Na entrada da Terra, por entre erupções de muco e sangue vulcânico, rasgaram-lhe a concha da placenta e cortam-lhe os fios atados ao umbigo. O bebê brande o sino do nascimento com um grito rasgado.


Filho e mãe se encararam em silêncio num momento de revelação profunda em que palavra alguma poderia ser dita.


O bebê havia nascido com olhos da mesma tonalidade dos da avó materna. Aquela dos balões. A que ousou ir para bem longe da Power Tower. A que conseguiu seguir a luz mais forte. A que portava no DNA a mutação da pigmentação solar. A que tinha os olhos cor de âmbar.


PARTE 24


Cena pós-créditos:


Num ato reflexo, sem saber ao certo se estava acolhendo ou escondendo o menino, a mãe puxa o filho para perto de si e cobre com os lençóis.


O pequeno se sentiu ameaçado, fechou os olhos e imaginou a letra “A”. A partir dela escreveu em pensamento a própria certidão de nascimento:


"A Shermes

que primeiro verteu as primas bases do meu ser, dedico

Como saudosa lembrança estas

Memórias prólogas.” 


A mensagem foi capaz de chegar até a cidadela do cais, mesmo sem fios ou quaisquer recursos físicos de transmissão. Anos mais tarde foi encontrada no fundo do oceano, escondida em uma concha. Para Alfes, Shermes teria guardado o segredo por não estar plenamente convencido de que tal fato fosse possível. Nunca houve uma resposta da Terra. Nunca se imaginou que alguém pudesse lembrar de onde veio.



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